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Poeta - escritor - cronista - produtor cultural. Professor de Português e Literaturas. Especialista em Estudos Literários pela FEUC. Especialista em Literaturas Portuguesa e Africanas pela Faculdade de Letras da UFRJ. Mestre e Doutor em Literatura Portuguesa pela UFRJ. Nascido em Goiás, na cidade de Rio Verde. Casado. Pai de três filhos.

terça-feira, 11 de agosto de 2020

Crônica: O CANGACEIRO TRAPALHÃO: desculpas para as reminiscências, por Erivelto Reis

 

CINEMA COM PIPOCA E GUARACAMP

O BONEQUINHO DEGUSTOU

3/10 – O CANGACEIRO TRAPALHÃO: desculpas para as reminiscências

 

                Convidado pelo inexorável e inexaurível Bonecão metapolifônico criado pelo especialista em parangolés, borogodós, cinema, literatura e culinária, Roberto Bozzetti, aquele, me aventurei a listar minhas dez comédias.

                Esse é um texto de reminiscências. Se for alérgico, não leia. Ou leia do oitavo ou nono parágrafo em diante. Ou leia só o último parágrafo. Se persistirem os sintomas de reminiscências, procure um médico, ou escreva as suas.

Para esse número, confesso que estou como se saísse de pantufas em público, visto que em muitas listas a menção a clássicos e sua influência no mundo das artes e da cultura erudita pode ser uma  tônica e não há qualquer crítica de minha parte a quem o faça. Logo eu?! Resignei-me, portanto, consolando-me sob o argumento racional de que a assombração sabe para quem aparece.

                Sim, minha infância e minha formação como espectador de cinema passam pelas matinês do Cine Palácio Campo Grande, na rua da Silbene, do Mercado São Brás e da Casa Cruz, ao lado da loja de Calçados Vilma, para assistir aos filmes d’Os trapalhões. Isso ocorria nas férias escolares de julho e nas férias escolares de final de ano. Não escrevi apenas “férias” porque no país da minha infância se trabalhava todos os dias de segunda a segunda, desde as seis da manhã e até a noite. E as idas regulares ao cinema só eram possíveis, vejam vocês, porque meu pai, Sr. José de Arimatéa, era jardineiro na casa do Sr. Haroldo, gerente do cinema, um simpaticíssimo descendente de portugueses que gostava de ouvir as histórias que meu pai sempre contava enquanto trabalhava: causos da roça, piadas intermináveis e croniquetas da astúcia de gente simples, em geral tendo a ele próprio como personagem central, autor sagaz dos desfechos jocosos e mirabolantes. Uma espécie de Pedro Malasartes oriundo da Paraíba.

                Seu Haroldo era gerente geral do Cine Palácio Campo Grande, morava numa grande casa na Avenida Cesário de Melo, onde depois de sua morte, casa demolida, surgiu ali um grande mercado Rainha. O terreno fica em frente à agência do Banco Santander. Aquela foi uma das últimas regiões de construção de antigos casarões dos ricos comerciantes campo-grandenses dos anos de 1960 e 1970.

                A senha era simples. Não precisava sequer enfrentar as longas filas que se formavam em filmes como os d’Os trapalhões. Bastava dirigir-se ao bilheteiro, pedir pra falar com seu Haroldo e dizer que era o filho do “Baixinho” (vão lá agora e um obreiro dá um jeito em vocês). Lá vinha ele de onde estivesse e me recebia, perguntava por meu pai e meus irmãos, se estava tudo bem em casa, se precisava de alguma coisa – precisava-se de muito, na verdade, mas a orientação de casa era incomodar o menos possível e ser educado mesmo se ele dissesse que não podia autorizar a entrada, o que felizmente jamais aconteceu. E pronto: o cinema era meu por uma tarde inteirinha pra assistir a quantas sessões eu quisesse. Na saída, passava na gerência e agradecia e voltava pra casa feliz da vida com um monte de recomendações ao meu pai e a certeza de que ele era muito querido pra que alguém fizesse em nome dele uma gentileza daquelas: imaginem, permitir a entrada pra assistir a uma sessão de cinema, a um garoto pobre, filho do jardineiro, de graça, apenas em nome da amizade... Meu pai era um cara muito querido mesmo. E faz muita falta. Tá vendo aí, Roberto Bozzetti, onde suas provocações cinematográficas fazem com que a memória nos leve! Não entendo como tem gente que não goste de você. Quer dizer, até entendo...

                Pois bem, esse filme em especial, O CANGACEIRO TRAPALHÃO (1983), foi bem marcante porque pela temática do cangaço, meu pai se interessou em assistir e pela primeira vez fomos todos: meu pai, minha mãe e meus dois irmãos. Assistir a esse filme. Na verdade, foi a primeira vez que saímos para passear juntos, desde que meu pai e minha mãe e, consequentemente, eu e meus irmãos começamos a trabalhar como caseiros em um sítio. 

As peripécias circenses de Didi, Dedé, Mussum e Zacarias nós já conhecíamos do programa de televisão, Os trapalhões, todo domingo às 19h, mas a graça, o humor, era a dinâmica daqueles personagens em situações roteirizadas. Eles já tinham estado no Planeta dos Macacos, nas Minas do Rei Salomão, na Caverna de Ali Babá e os Quarenta Ladrões, na Guerra dos Planetas, na Ilha do tesouro já tinha sido Saltimbancos e sempre com a mesma dinâmica, dispersos em parte da trama e agrupando-se rapidamente conforme o desenrolar dos enredos. Mas sempre resolvendo os conflitos com improviso, alguma sorte e esperteza, que como bem afirmou Ariano Suassuna, “é a coragem do pobre”.

                Em O CANGACEIRO TRAPALHÃO, escrito por Doc Comparato e Agnaldo Silva, com diálogos escritos por Chico Anysio e direção de Daniel Filho, os atores Nelson Xavier e Tânia Alves revivem o casal Lampião e Maria Bonita da minissérie de 1982 e José Dumont (de Morte e vida e Severina, 1981) interpreta um tenente da polícia volante encarregado de prender ou executar Lampião. Em paralelo a isso, uma caixa/matrioska futurista era capturada e a cada investida em abri-la, revelava uma nova caixa idêntica e menor em seu interior. Esses eram os mistérios da trama.

No desenrolar da história Didi/Severino/Lamparino (qualquer que fossem os nomes dos personagens o grande público só os chamava pelos nomes dos personagens do programa dominical), devido a uma pretensa semelhança física com Lampião, acaba paramentado como ele para despistar uma emboscada armada contra o rei do cangaço e, logicamente, seu bando seria formado pelo restante dos integrantes do quarteto trapalhão.  

Há muito de João Grilo nesse personagem que, posteriormente, numa releitura do Auto da Compadecida, Renato Aragão encarnaria.  Não posso deixar de citar que há muitas referências ao filme Casablanca nesse filme por conta da paixão tímida de Didi/Severino pela mocinha da vez (isso acontece também nos filmes do Jerry Lewis, um leitmotiv da narrativa de humor e na composição de personagens desses dois atores), interpretada por Regina Duarte, (há uma beleza de participação de Bruna Lombardi) que acaba trocando o trapalhão por um príncipe – Tarcísio Meira - montado em um cavalo branco. O que é estranhíssimo, porque até a 5 minutos do final do filme Regina Duarte dava a entender que ficaria com Severino/Lamparino/Didi. Desde aquela época ela dava sinais... e o público, paradoxalmente cego, não percebia...

Em seu desfecho [qualquer dos filmes do quarteto] a recompensa, em ouro, em sucesso, em riqueza e prestígio, de um modo geral, algum consolo amoroso em detrimento da expectativa amorosa inicial frustrada, uma visão de uma vida no sudeste, longe da seca e da fome – nos filmes que trabalharam ou se passaram no nordeste, como forma de simbolizar o fim da pobreza, e a série de gag’s e gritinhos e piadocas pra lá de politicamente incorretas para os tempos que seguem.

Insinuava-se também repetidamente a figura de Didi/seus personagens em cada um dos filmes como a de um palhaço triste, o cara que ajudou todo mundo e no final termina sozinho enquanto todos se congraçam... é uma imagem forte que já foi usada também por Jerry Lewis.

Lembro que já saía do cinema na expectativa pelo próximo filme e dos meus colegas duvidando que eu tivesse assistido ao filme. Alguns, porque acabara de ser lançado e outros porque me sabiam bem pobre. Ficava pensando  também em como seria triste o dia em que aqueles atores morressem. O Zacarias, o Mussum... Hoje penso que pior destino ainda têm aqueles/as cuja reputação chega a termo enquanto ainda estão vivos... Eu contei pra vocês que nesse filme tinha o Renato Aragão e a “Namoradinha do Brasil”?!

A arte culinária, é claro, é do irrefratável Bonecão, Roberto Bozzetti. Risoto de aspargos, cardoncellos e presunto espanhol. Arroz arbóreo e queijo pecorino. Seival touriga da Miolo pra acompanhar. 30 de março de 2018.


O CANGACEIRO TRAPALHÃO, 1983

O CRIADOR DO BONECÃO, ROBERTO BOZZETTI.
TOMANDO GUARACAMP AO VIVO

Risoto de aspargos, cardoncellos e presunto espanhol. Arroz arbóreo e queijo pecorino. Seival touriga da Miolo pra acompanhar. 30 de março de 2018.


 

 

 

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