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Poeta - escritor - cronista - produtor cultural. Professor de Português e Literaturas. Especialista em Estudos Literários pela FEUC. Especialista em Literaturas Portuguesa e Africanas pela Faculdade de Letras da UFRJ. Mestre e Doutor em Literatura Portuguesa pela UFRJ. Nascido em Goiás, na cidade de Rio Verde. Casado. Pai de três filhos.

segunda-feira, 10 de agosto de 2020

Crônica: "Vida de Cachorro: a gênese da comédia com animaizinhos", por Erivelto Reis

 

CINEMA COM PIPOCA E GUARACAMP

O BONEQUINHO DEGUSTOU

1/10 – VIDA DE CACHORRO: a gênese da comédia com animaizinhos.

Quando o Bonecão aventou a possibilidade de que eu escrevesse sobre comédias, me bateu uma aflição muito grande. Em primeiro lugar, pela natureza da erudição cinematográfica do autor do convite, o titeriteiro que manipula o Bonecão, o impagável Roberto Bozzetti, que conhece, se não conhece, pesquisa e quando pesquisa reproduz o resultado de seus levantamentos com uma naturalidade magnética desconcertante que mimetiza mesmo o seu gosto profundo e suas reminiscências de cinéfilo, porque ser cinéfilo é uma distinção mesmo para quem já se destaca por morar no paraíso do  Brejo, ser poeta, mestre cuca, professor e pesquisador dos brabos. Em segundo, porque parece que a memória corre para os braços do que é fácil, mais perto, ou se esconde no primeiro momento em que a acessamos em busca de arquivos tão específicos quanto filmes de comédia ou qualquer outra informação que nos seja cara. E, finalmente, em terceiro lugar, pelo fato de que o texto de Bozzetti mescla uma arguta visão de si mesmo, ou seja, não escreve apenas sobre cinema, escreve sobre si mesmo vendo cinema e sobre as inferências que assistir aos filmes são capazes de despertar através de reflexões, críticas, memórias afetivas, detalhes técnicos, apuros e desencontros estéticos, curiosidades e expectativas e alguns momentos de ironia e provocações a interlocutores idealizados e/ou pontuais. Agradeço a oportunidade e a deferência e advirto: não espere nada. E nada acontecerá.

Isto posto, como o assunto aqui são as comédias, vamos a elas. Começo com o mestre dos mestres (sei que Bozzetti detesta esses genéricos hiperbólicos), mas trata-se de Charles Chaplin na obra VIDA DE CACHORRO, (A dog’s life), de 1918. É um curta-metragem (35 minutos) mudo e em preto e branco. A música, a direção, o roteiro e a interpretação do notável “vagabundo”, Carlitos, criação de 1914, surgem com graça e sincronismo nessa notável comédia.

Após salvar um cachorrinho de rua da sanha de outros cães furiosos, “Mut”, o primeiro cão protagonista do cinema, o vira-latas e o vagabundo tornam-se amigos inseparáveis. Há uma cena em que, proibido de entrar acompanhado do cão em um dancing, Carlitos, coloca o animal dentro das calças e o público pode ver o rabo do cachorro escapando por um furo na parte de trás da calça do vagabundo. Uma sobreposição poética entre homem e cão. O cãozinho de rua, enfrenta batedores de carteira, o desprezo que certas pessoas têm em relação aqueles – gente e animais – que estejam em situação de vulnerabilidade social, em situação de rua.

Após conhecer uma cantora não tão talentosa e explorada pelo dono do estabelecimento, e de posse de uma boa quantia oriunda da carteira do ricaço assaltado o trio formará uma família. O desfecho do filme nos enche de esperança num mundo melhor. 

Chaplin é um ícone e sobre ele escreveu o poeta Carlos Drummond de Andrade, no poema “Canto ao homem do povo Charles Chaplin”:

“Era preciso que um poeta brasileiro, [...]

preso à tua pantomima por filamentos de ternura e riso dispersos no tempo,

viesse recompô-los e, homem maduro, te visitasse

[...]

 

Para dizer-te como os brasileiros te amam

e que nisso, como em tudo mais, nossa gente se parece

com qualquer gente do mundo - inclusive os pequenos judeus

de bengalinha e chapéu-coco, sapatos compridos, olhos melancólicos,

 

vagabundos que o mundo repeliu, mas zombam e vivem

nos filmes, nas ruas tortas com tabuletas: Fábrica, Barbeiro, Polícia,

e vencem a fome, iludem a brutalidade, prolongam o amor

como um segredo dito no ouvido de um homem do povo caído na rua.”

 

Entre as cenas memoráveis do filme estão a que o vagabundo tenta uma vaga de emprego, no que é desprezado e passado para trás – literalmente – pelos outros candidatos e a cena em que Carlitos, manipula as ações de um dos ladrões que ele deixa desacordado, na busca por resgatar a carteira. Como comédia, inova, encanta e sensibiliza (o vagabundo chega a usar o cãozinho como travesseiro) e abre espaço para toda uma gama de filmes posteriores (entre dramas e comédias) em que gente, cãezinhos e canzarrões contracenam, de Renato Aragão (Os trapalhões nas minas do Rei Salomão e seu cachorrinho Lupa), passando por James Belushi e seu parceiro policial Jerry Lee (em K-9, um policial bom pra cachorro), até chegar a Owen Wilson e Marley (em Marley e Eu).

Nesse mundo cinematográfico de Rin-tin-tins, Lassies, Bengies, Beethovens, no qual Chaplin foi mais uma vez pioneiro, os animais espelham a personalidade de seus donos seja para o heroísmo, seja para a vadiagem e são, via de regra, a chave para um mundo melhor. A menos que o cãozinho em questão seja a cadelinha Baleia, da obra de Graciliano. Aí o buraco é mais em baixo.

Chaplin resgatou o cãozinho de um abrigo para que ele participasse do filme, um cão destemido e não adestrado, como ele queria, e o transformou em protagonista. Adotou o cão, mas este, infelizmente, morreu de solidão alguns meses depois, enquanto Chaplin viaja pelo mundo a divulgar o filme. O obituário do cão foi publicado a 25 de maio de 1918 na Movies Picture World e dizia "Mut, morreu em 29 de abril – Com o coração em pedaços." E isso não tem graça.

Sei que Bozzetti é um homem dado às mais delicadas ternurinhas, como as devotadas ao aparentemente insensível porquinho-da-índia do poema de Bandeira, aos seus felinos de estimação. E duvido que esta comédia não o divirta e cative.

Em tempo, escrever sobre cinema não é fácil. São muitas portas que se abrem e que, se bobear, vão dar em lugar nenhum além de nós mesmos. Esse Bozzetti só pode ser gênio ou louco ou os dois.

A arte Culinária do Bonequinho Degustou é de Roberto Bozzetti - 09 de julho de 2020. Creme de Milho com Camarão.


Chaplin e Mut. 1918. A dogs life



09 de julho 2020 - Roberto Bozzetti e seu Creme de Milho com Camarão 


Obituário do Cãozinho Mut. Falecido em abril de 2018.
O primeiro Cão protagonista no cinema.





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