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Poeta - escritor - cronista - produtor cultural. Professor de Português e Literaturas. Especialista em Estudos Literários pela FEUC. Especialista em Literaturas Portuguesa e Africanas pela Faculdade de Letras da UFRJ. Mestre e Doutor em Literatura Portuguesa pela UFRJ. Nascido em Goiás, na cidade de Rio Verde. Casado. Pai de três filhos.

domingo, 26 de fevereiro de 2023

Crônica: "A Visita", de Erivelto Reis

 

A visita
Erivelto Reis

A visita

Erivelto Reis

Dá licença, seu dono de editora, que eu ensine um pouquinho ao meu aluno? É que o conteúdo que precisa ser construído para dar a ele a oportunidade de buscar seus sonhos e tentar, minimamente, conquistar um espaço, construir uma carreira, qualquer que seja ela, não está previsto na sua apostila, no seu livreto, nos seus métodos.

Não. Longe de mim dizer que o seu livro didático é um ki-suco, um pó de refresco artificial e cancerígeno diluído em 1000 litros de água suja nocivo que não serve pra matar a sede de conhecimento que os meninos e meninas pobres têm e que podem ter.

Dá licença, seu capataz da obra, olheiro do empreiteiro que é sócio ou financiador da campanha futura do secretário ou passada do governador, pra que eu entre na sala de aula, onde trabalho? Poderia não superfaturar, a brita, o banner, a ripa, a torneira, a tinta. O mesmo vale pra tudo quanto e tipo de fornecedor que faz negócios com o governo e que, quando e se, oferecer o melhor preço, que não ofereça algo de péssima qualidade?!

Dá licença, seu influenciador, consultor, peagadêzinho de escritório, militante de gabinete, que eu questione a real possibilidade de pasteurizar e uniformizar as práticas de ensino? Já perceberam que estão empurrando nossos estudantes para a servidão e o não reconhecimento de sua cultura, de sua história e a de seu povo nos livros escolares. Ah, sei... Você já esteve no meu lugar. Sou um professor do século XIX, numa sociedade do século XXI, acostumada a lidar com corrupção do século XXI, com compadrios políticos do século XXI, com neoliberalismo do século XXI, com a desigualdade do século XXI, com complexos bilionários do século XXI, especializados em parasitar a educação pública.

Pela sua ótica, somente eu, professor que questiono e entendo a educação como chave para nossa soberania é que sou do século XIX. Só eu devo me calar ante a devastação ou enquanto alguns poucos enriquecem às custas da minha desvalorização, de minha descredibilização. Talvez seja possível pensar que o desprezo dos ricos e burgueses pelos mais pobres, o desejo de exclusividade, inclusive na educação, o desejo de poder e a falta de autocrítica dos que não sendo parte da burguesia, não detendo o controle dos meios de produção, alegram-se com o que se possa chamar de vip, de top também sejam do século XIX. Que suas viagens, as trocas de favores, a ausência da cobrança real de impostos sobre suas heranças e seus negócios e seus condomínios, não foram suficientemente eficientes em impedir que nossos meninos e meninas mais pobres sobrevivessem e com a ajuda de professores e professoras da educação pública, galgassem espaços que somente interessaria a vocês que pertencessem aos seus herdeiros.

Sou um professor da escola pública ao qual suas apostilas e livros didáticos e projetos de nuvem e saliva sistematicamente tentam silenciar ou fazer desistir. O que vier primeiro. A quem pagam mal, para quem a isonomia é apenas uma utopia, numa carreira que vai sendo desmontada porque os gestores impedem a realização de concursos, precarizam, assediam, dão péssimas condições de trabalho, superlotam as salas de aula, criam e incentivam políticas que favorecem aos entreguistas, pelegos, folgados, espiões, arrivistas... aos que odeiam a sala de aula ou definitivamente perceberam que não são professores, mas que por diversas razões chegaram à escola nessa posição.

Sou visita na minha escola. Ela é dos que de longe a comandam e não a comandam para servir em benefício da sociedade que paga por ela e precisa dela. Sou visita na minha sala de aula, invadida por artefatos e objetos ou superfaturados ou sem utilidade, escolhidos à revelia de toda e qualquer formação e capacitação que eu tenha. São mordaças tecnológicas, traquitanas sem efeito e manutenção. Sou visita na escola que é minha, de meus alunos e do nosso povo. E o governo nos mata de sede, de raiva, de vergonha, de humilhação e de fome, naturalmente. Pôs a vassoura atrás da porta de cada sala de aula, para que o professor-visita se apresse a desistir, a se calar e a ir embora e construiu um muro quase intransponível entre a capacidade e o potencial de nossos alunos e os sonhos que poderão realizar. 

O governo é um mau anfitrião e trata mal a todos; e ao professor, especialmente, como uma indesejável visita. Dá licença, Seu Político, seu Gestor, senhor Empreiteiro, dona Editora, senhora Consultora?! Vocês estão aí atravancando nossos caminhos.