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Poeta - escritor - cronista - produtor cultural. Professor de Português e Literaturas. Especialista em Estudos Literários pela FEUC. Especialista em Literaturas Portuguesa e Africanas pela Faculdade de Letras da UFRJ. Mestre e Doutor em Literatura Portuguesa pela UFRJ. Nascido em Goiás, na cidade de Rio Verde. Casado. Pai de três filhos.

segunda-feira, 28 de setembro de 2020

Poema: "Oriana", de Erivelto Reis

 Oriana

Erivelto Reis
Que depois de longa viagem
Eu, pássaro, pudesse
Pousar em teu colo.
Observar ainda as tuas mãos cansadas
Do artesanato, do tear
E do prantear diário
E estas pudessem amparar meu pouso.
Eu cantaria um trinado triste
Como forma de contar
Tudo o que vi sem você
E o que vi sem você maltrata e existe
Mesmo sem ser palpável...
E como um Xisto, corro risco de uma aventura
Em que o silêncio último prospere.
Eu te pediria que me espere...
Mesmo que você não ouvisse isto,
Que não entendesse meu pedido.
Sua ausência
Torna o mundo sem aroma,
Com um ruído
Que lembra alguém ao longe chamando
Um nome que se vai perdendo à distância
Como essência que some
Porque o medo e a solidão a consomem.
Pudesse me aninhar em teus braços...
Pudesse ruflar as asas
Pousar em teu coração feito casa...

domingo, 27 de setembro de 2020

Crônica: "A Lógica do Censor", de Erivelto Reis

 

A LÓGICA DO CENSOR

Erivelto Reis

 

            A lógica do censor é que a sua função não seja condenável moral e eticamente justamente porque, segundo seu raciocínio, repousa sobre seus ombros a responsabilidade por impedir que a moralidade e o bem (definidos sob a ótica de seu empregador) e não da coletividade, estão sendo protegidos.  

            A pessoa que compactua com a censura, exercendo cargo por indicação, comissionado, contratado ou não, não é capaz de ver que seu trabalho empurra gradativamente a criatividade, o bom senso, o diálogo, a democracia para um precipício de onde não se pode escapar sem dano, sem feridas.

            O censor (ou censora) não entende a dimensão da violência de sua atitude e o ódio represado, tornado explícito de forma completa ou gradativa, sub-repticiamente por seu empregador, seja este pessoa física, instituição, prefeitura, governo estadual, federal, autarquia, secretarias, comissões, quartéis, porões.

            Há grande e indisfarçável hipocrisia no censor ou censora quando, portador (a) de formação que tecnicamente lhe permitiria dialogar, escolhe exercer a censura violenta, definitiva marca de oposição, seja à ideologia, ao exercício profissional responsável do (a) outro (a), à sua expressão intelectual, artística ou existencial, marcando-o (a), apontando-o (a) para deleite de seu empregador.  Aquele (s) ao (s) qual (is) seu trabalho como censor ajuda a expor, colocar na berlinda, fragilizar, agredir velada ou publicamente, sofre (m) de forma indelével a humilhação de uma condenação sem base legal que afronta os códigos profissionais e a Constituição. Mas, sobretudo,  flagra-se a hipocrisia do censor quando, de formação inferior aos que censura, ou obscura e incerta, inseguro (a), desconfia de tudo que lê, vê (ou nem vê), ouve, entende ou supõe entender, divisa o censurado e seu trabalho como alvos.

Diante de sua escolha equivocada em compactuar, de suas pretensões de privilegiar-se de migalhas de poder – ou do que julgue poder –, de seu oportunismo, do compadrio que o faça escolha de quem se encontra, suposta e momentaneamente, em posição de formar equipe ou escolher indivíduo que censure, às suas expensas ou do erário público, sente-se valorizado (a), reconhecido, em estado de superioridade aos que nem conhece, mas censurará conforme orientações de seu empregador.

NADA JUSTIFICA A CENSURA. Seja na arte, seja na educação, seja no debate de ideias. A não ser pela vontade declarada ou camuflada de  eliminar, intimidar a possibilidade do debate de ideias. Nem mesmo a possibilidade esdrúxula de “antecipar-se ao erro”, justifica o censor. Sobretudo quando, politicamente, a intimidação de ostensivamente constatar-se que numa empresa, numa entidade, num governe, há pessoa (as) que exercem a função de censurar, produz um nível de estresse, de assédio moral sobre os trabalhadores e trabalhadoras que afronta a constituição e quaisquer convenções trabalhistas, mesmo em nossa combalida realidade de perda de direitos trabalhistas. 

Não obstante, tolhe, poda, corta, impede, magoa, diminui a importância do pensamento crítico, do diálogo, da criatividade. O censor mecaniza as relações, amesquinha-as, impede que se dê em patamar de igualdade e respeito a quem quer que o serviço, a obra, o trabalho seja produzida, principalmente quando o público for a sociedade civil organizada, via servidores ou empregados públicos contratados para exercerem o que seja obrigação dos governos (municípios, Estado e governo federal) em oferecer para a sociedade. Não está em sintonia com a sociedade um governo que, para governar, censura. Mesmo em nome de um ‘bom governo’.

Não é digno de gerir, administrar, coordenar, aquele que censura. Aquele que sem apoiar, sem debater, sem planejar, ou em nome de eventuais falhas pessoais, individuais ou setoriais daqueles a quem coordena, governa, gere, censura. Há improbidade, contrariedade aos preceitos constitucionais e entendimentos das diversas entidades de classe, juizados e congregações de trabalhadores e entidades que atuem na regulamentação e defesa da qualidade das relações e dos serviços.

Aquele que aceita o papel de censor. Sinto profundamente por sua trajetória pessoal e profissional, vitoriosa que possa ter sido até então, por mais bem relacionado (a) que seja, abre um divisor de águas em sua carreira, irreversível, tanto mais quanto as condições éticas e/ou legais que o (a) tenham alçado ao posto que escolheu.

Há um monstro prestes a despertar  metaforicamente expresso através das pretensões inconfessáveis do gestor que contrata censores e da própria obtusidade e do medo do censor de desagradar ao seu contratante. Tal criatura horrenda não se pode comparar a uma eventual falha de um  profissional, de um setor, ou de um  trabalho ou obra a que a censura e o censor pretendam conter. A censura é um monstro que se alimenta da violência e do medo que tal assédio representa.

Evidentemente ser contra a censura não significa ser a favor do erro, da falha, da falta de qualidade em qualquer serviço seja em empresa particular, seja no serviço público. Claro está que há mecanismos internos de ordenação, articulação, projeção e avaliação das atuações profissionais. E mesmo em face da falha setorial ou individual, serão o diálogo, o planejamento, a apuração, e a responsabilização focada no erro ou desvio, à luz da lei e da justiça que garantirão o respeito às leis trabalhistas e profissionais, À CONSTITUIÇÃO (que proíbe a censura) e não uma ameaça explícita ou velada e práticas de censura aos demais profissionais e às organizações.

Imagino a vergonha do censor ao censurar ou simplesmente receber para avaliar com vistas a liberar ou proibir um texto ou parte dele, por exemplo, produzido por um (a) colega seu (sua). Independentemente de formação acadêmica, qualidade artística, grau de afinidade entre censor e avaliado/censurado... Quanto constrangimento. A censura é uma condenação sem provas. É uma condenação por interpretação equivocada das provas. É uma condenação com ideologização das provas ou por incompreensão das provas. A CENSURA É CRIME EM SI MESMA. Por existir e haver. Por ser exercida linear ou isoladamente. Por ser bancada com dinheiro público ou recurso particular.

Imagine que o dinheiro pago ao censor, por exemplo, no serviço público, carece de um histórico de preocupação e qualidade anterior do gestor em investir em recursos para os profissionais que ora pretenda intimidar ou censurar ao submetê-los e aos seus trabalhos aos canais e mecanismos do censor. Imagine que justificativa de alocação real no orçamento público este trabalho terá oficialmente apresentado. Se não foi explícita, legal, clara, especificada, atende somente ao interesse obtuso do gestor.

Cabe ainda perguntar, no caso de gestor da coisa pública, que empenho, que determinação possa ter havido para convencê-lo a contratar um censor, em lugar de investir nos trabalhadores e em suas condições de trabalho, em dialogar com eles. Como reuniu material, que reclamações terá recebido, por que teria aberto mão de sua cadeia de comando e de articulação focal para sanar o problema e com quem discutiu até chegar à conclusão de que só mesmo um censor seria o ideal para sua gestão? Será que leu a Constituição e sabe que a censura contraria a lei máxima do país? Que a censura não tem base legal?!

Eu tenho medo da censura porque estudei e li bastante. Porque convivi com pessoas que passaram por todos os horrores decorrentes da censura: violência física, intelectual, moral, psicológica. Porque a censura gera a perda da qualidade da gestão pública e particular, falta de transparência, aumento de gastos. Ou seja, qualquer forma de censura, sobretudo aos trabalhadores e trabalhadoras, no exercício digno e responsável de sua atividade profissional é inaceitável. A CENSURA É UMA AGRESSÃO! É ASSÉDIO MORAL!

A lógica do censor pode fazer com que ele momentaneamente entenda ser relevante a sua atuação. No entanto, a falta de lógica de haver censura num país democrático em que coexistem tantos mecanismos de articulação profissional e intelectual, tantas metodologias positivas de se construir o que quer que seja, de um serviço a um produto, e principalmente, o diálogo, o bom censo e o respeito às leis e entidades que regem as organizações e instituições brasileiras. Ninguém está acima da lei. Nem os que mandam censurar. E o censor está abaixo da crítica.

Quando o navio afunda, o censor invariavelmente se afoga; sua carreira finda ou  segue como sobrevida e o seu contratante ainda o responsabiliza pelo naufrágio. Os demais profissionais, que exercem sua atividade de forma ética e responsável, ou se salvam ou se tornam vítimas, mas nenhuma âncora os mantém inertes em suas carreiras ou os sepulta no mar de lama da violência da censura.

 

 

 

 

segunda-feira, 21 de setembro de 2020

Crônica: "Proseando", de Erivelto Reis

 

Proseando

Erivelto Reis

 

Ei-lá, moço, adonde que o senhor que ir?

...

Eê, num tem ninguém aí, não! Tá bandonado pa mais de ano.

...

O dono se cansou das criação dele. Fechou tudo e foi si imbora.

...

Num adianta. É terra arrasada. Em se plantando num vai produzir nada.

...

Ainda que tenha umas cria reproduzindo, uns último peão tentando dá jeito...

...

Quando num botam fogo, eles saqueiam, sacaneiam, mentem, roubam e matam, daí num sobra nada.

...

Defende, sim. Fala em nome do dono diz que vai curar as criação, que vai abençoar, mas só tira proveito das situação tudo.

...

Pelo que o senhor tá me falando que nasceu aqui, que era tudo diferente, bonito, democrático...

...

Eu não duvido, não... mas agora... se eu fosse o senhor não entrava nesse lugar, não.

...

Teve uns tempo pa trás que ele já quis acabar com tudo. Encheu de água até o topo... Morreu foi criação. Mas as cria dele, vinga, brota, reproduz e mata. E num venha dizê qui com gente é diferente, que num é o que tá parecendo, não...

...

Sinto muito, moço. Possa ser que seja terra de seus parentes, que o senhor tenha boas lembrança. Mas agora, até as boa lembrança tá difícil.

...

Ele não deixou na mão de ninguém... Aliás, certo era cada um toma conta da sua própria vida e ter juízo. Mas chegou uns pessoal aí, disse que tava a favor dele, ao lado dele, em nome dele, e os povo foi querditando em tudo. Quando viu, tá sendo posto pá fora, perdendo as benfeituria, uma increnca danada.

...

É... Os cara que tavu falando em nome dele, propriamente num tomaram conta, mas se ligaram cum uns pessoal que gostava de arma, de violência, de ameçá as pessoa, se juntarum com uns juiz de de comarca, cum uns grupo mei suspeitoso...

...

Di qui jeito, moço?! Duvidá, a gente duvidava, mas eles passava dia e noite espaiando mentira sobre as pessoa. E os pessoal in veis de porcura saber das verdade verdadeira, aceitava e ainda apoiava. Por isso, se o senhor qué saber, é qui eu querdito qui o dono mermo, fechou essa tranqueira e foi simbora.

...

Num sei dizê, num senhor ... As notícia é que ele tá muito descontente com os filho dele. Que arrumaram um administrador, uns conselheiro quasi tudo da pior qualidade de vivente que possa inxistir.

...

Eu tô por aqui, porque fui ficando, ficando... Mas tô só alertando os incauto.

...

Num sei se tem previsão de abrir, de melhorar... de botá com esses administrador pra corrê... Eles num tem pena de nada, animal, criança, mulher, índio, professor, estudante, trabaiador... eles ameça, mente, toma os direito poco que as pessoa tem e fica tudo por isso mesmo...

...

Quem vai tê coragi de briga com um pessoal desse?!É tudo gente perigosa. Num digo que o dono mermo da criação tenha medo delis, porque o dono mermo da terra, dos seres vivente dessa terra é poderoso por dimais, mas anda meio que acovardado, desligado dessas malvadeza toda, isquicido de suas obrigação... num é possívi uma cousa dessas...

...

O jeito que eu vejo é juntá todo mundo que ainda mora, que já morou por essas paragens e se uni e botar esses verme pá correr, ou na cadeia... porque du contrário ainda vô vê muito filho pranteando mãe, muito pai e mãe desempregado, muita gente adoecendo, morrendo, passando fome, sem iscola, sendo humilhado, explorado por esse pessoal perverso e pernóstico. E um tanto de terra e de riqueza dessa nas mão dessa corja...

...

Quê que isso, moço. Dinheiro tem demais pra fazer dessas terra as mais linda do mundo, mas esse povo que tá aí no poder rouba tudo... Tem gente esperta pra mudar as coisa, com inteligência, disposição pra trabalhar... Mas os safado num querem dar veiz a ninguém que preste. Aí é só sofrimento.

...

Vai com deus, então, amigo. Protegi  sua família. E deus se vier pra essas banda di novo, qui venha armado...

 

domingo, 20 de setembro de 2020

"Notas sobre minha Mãe", por Erivelto Reis

        Eu e minha mãe ouvíamos o show do Paulo Lopes, o Paulo Giovanne, o Haroldo de Andrade e o Show do Waldir Vieira com as canções do Roberto Carlos na Rádio Globo AM. Era 1981. Eu tinha 5 anos. O rádio era bege e chiava. Meu pai tinha uma bicicleta velha e saia para trabalhar de pedreiro e jardineiro com o Ubiraci, e com O Rei, irmão do Ubiraci. Passavam na bicicletaria do Bidala para pegar algumas ferramentas e calibrar o pneu da bicicleta. Morávamos na Teixeira de Aragão em Campo Grande. Eu memorizava as letras das canções, os títulos das músicas e ficava repetindo. Ela gostava. Achava incrível e pedia pra repetir. Eu tinha 5 anos. Ainda posso ouvir o chiado do rádio enquanto, na beira do tanque, na frente da casa, ela lavava roupa.

À tarde, quando meu pai chegava, ainda dava tempo de brincar no balanço velho de duas cadeirinhas. Havia um resto de aterro no quintal, Dona Dica e dona Lurdes eram nossas vizinhas. Lá na frente da casa de vila, Irene Vianna e sua família eram nossos amigos. Seu Abílio tinha uma venda na esquina e um baleiro mágico de tão encantador. Havia a Dona Isabel que tinha uma casa em frente ao Rocha Faria. Meu pai cuidava do jardim do velho sobrado e ela nos ajudava como podia. O ano era 1981. Um último ano de alegria sem mágoas.

Houve a oportunidade de meu pai e minha mãe se tornarem caseiros de um sítio. Trabalhávamos os cinco: meu pai, minha mãe, eu e meus irmãos. O salário era mínimo, atrasava e era um só. Fomos conhecer o sítio em 1982. Eu, minha mãe e meu avô Manoel. Meu pai e o Rei (Wilson) grande amigo dele, estavam trabalhando na reforma do portão. Subimos a rua lateral da Igreja do Bom Jesus, viramos à direita e pude ver meu pai e aquela "fortaleza" de sítio.

Trabalhamos dia e noite durante muitos anos. Desde às 5 da manhã até a noite. Todos os dias. Minha mãe cortava os panos de prato que protegiam os queijos que meu pai revendia, depois passou a fazer acabamento em crochê pra eles. Arrumávamos a casa simples, de três cômodos, que preservei, depois que comprei o sítio com minha gloriosa Gloria Regina. Cuidávamos da horta, dos animais, varríamos o quintal. Depois ela foi vender doces na porta de uma escola. E fazia blusas e caminhos de mesa de crochê para vender.

Com ela trabalhei vendendo perfumes, chapeados, vasos decorativos de cerâmica, potes plásticos em reuniões de bairro, no carro de lanches em eventos... Acompanhei todas as idas dela no pré-natal e nas consultas para o nascimento do meu irmão Elton em 1985. Lia as cartas que chegavam de Rio Verde, Goiás, e ouvia e interpretava o que ela queria dizer para escrever as cartas em resposta aos parentes. Fiz o cadastro e todos os meses ia ao banco real, com o dinheirinho que ela juntava, para pagar o carnê laranja de autonomia do antigo inps. Eu tinha 10 anos.

Quando sobrava alguma coisa, comprávamos discos: todos os sertanejos (que hoje seriam os de raiz e que nem eram famosos por aqui), Odair José, Carlos Alexandre, Amado Batista, Roberta Miranda, Fernando Mendes, José Augusto, Gil Max... Comprávamos, às vezes, usados na feira de Campo Grande. Eu nem gostava muito de ir à feira, porque era o caminho para ir ao posto de vacinação Belisário Pena. E eu tinha pavor de injeção. Tirávamos fotos vestidos de marinheirinhos - eu e meus irmãos - em frente à Guandu Veículos que tinha um jardim bem bonito, ou na praça Freire Alemão, em frente ao mercado Sendas. Ela revelava e mandava pros parentes em Rio Verde. Minha mãe e eu tínhamos quase a mesma idade. Diferença de 15 anos apenas. Voltamos juntos a Rio Verde, Goiás em três ocasiões: 1982, 1988 e 1990. Hoje chove aqui, num canto de meu olhar perdido.

Quando havia comemoração pelo dia das mães, na escola, eu sempre dizia um poeminha, uma quadrinha em homenagem a ela e a todas as mães. Na escola Jorge Washington para a qual ela me levava, passando por trás do cemitério e do RP Mont, ou no José Bonifácio. Sempre eu dizia ou inventava um poeminha, uns versinhos ou apresentava o que as professoras ensinavam. Eu nem era o aluno menos tímido, mas eu gostava de poesia e tinha boa memória. Uma vez, na terceira série, houve uma atividade de redação na escola e a minha redação foi selecionada. Aí, na reunião de pais, pediram pra ela ler a minha redação... só que ela não sabia ler.

Foi assim que decidi me tornar professor... Ela levava ou falava dos meus livros ou da minha trajetória - fosse como garçom ou como estudante e depois, como professor pra todo mundo. Não esquecia o dia do meu aniversário de jeito nenhum. Nesse de 2020, me trouxe um kit de culinária de presente, pra que eu fizesse minhas receitas. Infelizmente não há receita para um momento triste como esse.

Minha mãe morreu.
A porta fechou-se
Sem possibilidade de reabrir-se em fuga.
Trancado do lado de fora
Da casa de minha infância
Com a memória órfã
A gritar seu nome
Desesperadamente

Lá de dentro.

Poema: "O Céu de Rio Verde", de Erivelto Reis

 

O Céu de Rio Verde

Erivelto Reis

Para minha mãe, Maria Aparecida, com saudades.

 

Se eu voltasse hoje para o céu de Rio Verde,

Supondo que Rio Verde tenha um céu só para o seus,

Eu queria voltar feito nuvem, espírito livre

De um filho pródigo, não arrependido ou frustrado,

Mas que tenha cumprido a sua missão.

Eu queria voltar feito a alma liberta de uma mãe

Que fez tudo por seus filhos e por sua família,

Enfrentou o tempo, a distância e a saudade

Para ditar ao mundo – se não fosse possível escrever –

As passagens mais comuns e cotidianas

E por isso mais árduas, de quem alimentou os seus,

Abrigou, protegeu e defendeu até o último dia.

Se houvesse um céu só para mim, exclusivo,

Como filho dessa terra de Rio Verde, Goiás,

Mais pranteada e idealizada do que abraço

De mãe e lágrima de despedida,

Eu quereria abraçar os feitos de meus irmãos,

Reencontrar os que já me esperassem

E proteger aqueles que persistem em sua lida terrena.

Queria um céu de perdão e contentamento

No qual eu pudesse rever o meu único e grande amor...

E abençoar meus descendentes.

Deve ser infinito o céu de Rio Verde.

Deveria ser possível, apesar da lúbrica tristeza por minha ausência,

Que onipresente eu me tornasse em cada pequena conquista,

Em cada pequena vitória daqueles a quem eu presenteei com a vida,

Assim como a esperança de que eu pudesse

Continuar confortando-os a cada momento 

Que em seus caminhos houvesse um entrave.

Nesse céu de Rio Verde, eu cantaria as canções mais bonitas de minha mocidade,

Passearia por entre as campinas do cerrado

E veria, do céu de Rio Verde, o pôr do sol na Terra,

Acomodado no alpendre da casa de minha infância.

É ali que eu seria eternamente feliz,

Que eu seria finalmente eu.

No céu de Rio Verde finalmente eu descansaria.

E começaria uma nova história.

Redimido pela trajetória de todas as pessoas

Que eu amei e às quais dei guarida

Redivivo na memória nova, definitiva e repentinamente Aparecida.

O céu de Rio Verde é tão longe...

E eu ainda tenho que atravessar a vida.

 

terça-feira, 15 de setembro de 2020

Poema: "Sofrência", de Erivelto Reis

 SOFRÊNCIA

Erivelto Reis

 (Pra cantar na quarentena)


Foi em 2020

Que eu tive bronquite,

Catapora, catarata e conjuntivite

Um cachorro me mordeu

E eu tive otite.

Foi em 2020

Que eu tive rinite,

Que clonaram o meu cartão

E a minha Netflix(e).

Tive Insônia, ansiedade

Bruxismo e gastrite.

Foi em 2020

Que deu tudo errado,

O celular caiu no vaso,

Fiquei confinado,

Descobri que meu vizinho

Era fã do Naldo ...

Tive estresse, dei topada,

Tive sinusite.

Foi em 2020

Que eu cortei o dedo

Tive estafa, pressão alta

Febre alta... perdi o apetite.

Foi em 2020

Que eu ganhei peso,

Tive estria, barriguinha,

Tive ruga e pé-de-galinha

Que agosto passou logo...

Tive celulite.

Foi em 2020

Que eu tive gripe

Intolerância à lactose,

Entupimento na suíte,

Tive caspa, tive cárie

E tive calvície.

Foi em 2020

Que eu tive amidalite

Que eu fiquei devendo ao banco

E ao bar da Judite

Tive medo, flatulência, virei meme,

Tive faringite.

Foi em 2020

Que eu tive dermatite,

Fiquei de mal com a vizinhança

Tive enjoo, tremedeira e labirintite.

Foi em 2020

Que eu tive artrite

Que fiquei desempregado

Descobri que tenho TOC,

Que entrei no Tik-Tok...

Que eu dei chilique.

Foi em 2020

Que eu soube o que era aliche...

Para festas e churrascos não tive convite,

Fiz dieta de low carb

Caí do beliche.

Acredite:

Foi em 2020

Acredite...

Foi em 2020!

Acredite,

Tudo isso eu tive.

segunda-feira, 14 de setembro de 2020

E-BOOK "CRÔNICAS DE CINEMA - VOLUME 2", De Roberto Bozzetti, organizado por Erivelto Reis

 O próprio mestre, Roberto Bozzetti, nos convida a conhecer um pouquinho de suas crônicas de cinema. Aqui, já no volume 2. Boa leitura a todos e todas.

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O SAGRADO INSTITUTO DA PARCERIA – II

Parceiro:

Erivelto Reis

Como pendurei aqui na semana passada o volume 1 dos meus irresponsáveis rabiscos sobre cinema coletados pelo doido do Erivelto Reis, penduro aqui hoje o volume 2, que o mesmo doido coletou, paginou, diagramou, enfim, deu um showzaço de programação visual, que minhas levianas impressões cinematográficas tentam acompanhar como possível.

E como eu tinha dito aqui também, pelo menos desde o samba, a parceria é uma instituição sólida na cultura brasileira. Pensemos em Ismael Silva & Nilton Bastos, Bide & Marçal, J. Cascata & Leonel Azevedo, avancemos com Vinícius e seus parceiros Tom, Baden, Carlinhos Lyra, Toquinho, pra chegar em João Bosco & Aldir Blanc e Fred Martins & Marcelo Diniz, entre tantas outras parcerias – verdade que nem sempre tão boas como as que citei.

Vejam ae, crianças!


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quinta-feira, 10 de setembro de 2020

Canção: "Equação do Amor", de Alzir Fourny, Erivelto Reis e Milton Costa

EQUAÇÃO DO AMOR (2020)




LETRA DA MÚSICA EQUAÇÃO DO AMOR.
EQUAÇÃO DO AMOR
Alzir Fourny
Erivelto Reis
Milton Costa
Você faz parte da equação
O x que eu busco encontrar
De difícil solução
Para amar, amar, amar
Não sou irredutível
Seu lado é igual ao meu
Venha! Troque o menos por mais
Quero ser seu.
De olhar circular
A boca elíptica sorri
Vou desenhar sua forma
Sem usar número pi
Vamos deixar o amor
Demonstrar sua função
Nós sabemos encontrar
O máximo dessa paixão
Não sei integrar por partes
Nem por frações parciais
Quero você inteira
Na onda do menos por menos dá mais
Esse clássico teorema
Que propõe a equação
É demonstrável sem dilema
O amor é a solução
Quero, quero, quero, quero você num zoom
Quero ser integral
Quero ser número um
Quero, quero, quero, quero você num zoom
Quero, quero, quero, quero você num zoom
Quero você integral
Quero ser número um
Quero, quero, quero, quero você num zoom

terça-feira, 8 de setembro de 2020

Poema: "Mantimentos", de Erivelto Reis

 Mantimentos

Erivelto Reis
O orgulho da própria ignorância
A indisfarçável ganância
Dos corruptos e ineptos
A manipulação dos estados
Catárticos de transes
Pretensamente espirituais
Em detrimento
De culpas inconfessáveis
A sanha contra os desafetos
E a certeza da própria santidade
Fazem a alta no preço dos mantimentos,
Os tiros contra os meninos pretos
O voto de cabresto,
O pouco cimento
Nas casas populares
A água cara e suja
Dos esgotos tubulares,
Das valas e balas
E pessoas dormindo
Nas calçadas a céu aberto
E os doentes agonizantes
Na porta das instalações hospitalares
É muito juiz comendo salmão
Cego aos próprios delitos
Em conluio com altas patentes
Militares em jantares
Esgares e sussurros dignos de lupanares
À sua insensibilidade e à corrupção
Do corporativismo da regalia e da ostentação
É outro país que eles governam
O deus deles é outro
É outro lugar que eles defendem
Não incide sobre eles
A lei que condena o pobre
Legislam em causa própria
Ou forjam provas
Pra incriminar desafetos
Seus espelhos dizem que são elite
Os seus crimes provam
Que são escória.
Não é apenas a perseguição à ciência
À cultura, à educação,
Ao ex-presidente, à ex-presidenta...
Não é o preço da gasolina,
do gás e do arroz
É a covardia assassina
A quantidade de mentira
Que essa gente inventa
É fazer da religião uma coisa...
Da política,
Um cancro que come ética
Da democracia uma prisioneira
Não é apenas por seu ódio ao funcionalismo
Por seu entreguismo, negacionismo
É o seu onanismo verbal, falso moralismo,
Sua fixação misóginossexual
Sua estupidez galopante
Os 126.000 vitimados
É o país sitiado
E o seu sarcasmo
Típico de quem tem certeza
De que estão todos dominados.
De quem vai vencer o jogo
Porque os dias e os votos
Já estão contados.


Poema: "AS CARTAS", de Primitivo Paes (2020)

Essa versão 2020, traz a marcação de pontuação feita em 2003 e que indica a respiração e as pausas do poeta em sua interpretação para construir suas inflexões em apresentações públicas. Essa marcação (feita a caneta, durante uma apresentação na Pedra de Guaratiba), apareceu numa antologia (ainda datilografada) que eu organizei em e a partir de 2003 e que conta com 14 volumes de poesia de autores do mundo inteiro, principalmente, os brasileiros e brasileiras. 

AS CARTAS

PRIMITIVO PAES


Quero ver a nossa gente

fazer a nação crescer.

os lavradores plantando

para a família colher.

ter casa para morar,

escola para aprender.

para quando for adulto,

não ser humilhado assim:

cabisbaixo, timorato,

vai à casa do vizinho

tremendo, olhando pro chão

chega falando baixinho...

Coração acelerado,

vai logo dizendo assim,

com uma carta na mão,

"Leia essa carta pra mim."

Chegou carta dos parentes,

não sabemos o que fazer;

nem meu pai, nem minha mãe,

nem eu não sabemos ler!

Desculpe tomar seu tempo,

e vir pedir pra você ler.

As coisas vão melhorar,

eu ainda quero ver:

um dia vou pra escola,

eu vou aprender a ler;

a somar, diminuir,

dividir, multiplicar...

pra quando for pra usina,

cortar cana pra moer,

saber quanto vou ganhar

e o tanto que vou perder!

Mas, quando as cartas chegarem,

eu mesmo saberei ler!


Segredos de meus parentes,

vizinho nenhum vai saber!

Daí, ninguém me segura, Brasil,

estou com você!

segunda-feira, 7 de setembro de 2020

Crônica: "Estou pensando em acabar com tudo", por Erivelto Reis

 SOBRE O FILME "ESTOU PENSANDO EM ACABAR COM TUDO"

Erivelto Reis 

Estou Pensando em Acabar com tudo (Netflix, 2020), baseado no romance homônimo (2017) do canadense Iain Reid traz alguns conceitos muito interessantes em narrativa, sobretudo as sobreposições e insights que articulam memória, subconsciente e imaginação.

A obra espreita ou supõe a presença do trágico, se destaca metaficcionalmente, traz boas referências em relação a Debord e A sociedade do espetáculo e ao filme Uma mulher sob influência (1974).

Pretende demonstrar como o Teatro, a Dança, a Arquitetura, a Música, a Fotografia, a Pintura, a Literatura, o Cinema, a Propaganda e a Poesia constroem o imaginário, a sensibilidade, os pactos e papéis sociais em consonância, ou em conflito, com a identidade, o gênero e as transgressões que podemos permitir – e porque as permitimos – ou as repudiamos – e as consequências em repudiá-las, principalmente para a mulher.

O filme constrói-se com fotografia interessante, embora em planos pouco variáveis e por um movimento de câmera que antecipa e direciona ocasionalmente algumas ações. Há um papel de parede no cenário da casa que lembra muito O iluminado, de Stephen King. As atuações são bastante interessantes, principalmente a de Toni Colette.

Incrivelmente, apesar de tantos predicados e referências, o provocante enredo não se resolve como história. Não no sentido de dar um final ao filme, mas de coadunar e reidentificar os pontos nos quais seu está embasado.

A cena final é/poderia/deveria ser o início da viagem e teria força lá. Onde foi montada, soou piegas e quem sabe, entregasse demais sobre o jogo narrativo metaficcional que se propõe. Talvez fosse mais impactante haver terminado a narrativa na porta da escola, no porão, no celeiro ou na lanchonete.

A ideia de que as condições climáticas extremas e adversas forçariam certas práticas e memórias não condiciona os diálogos, que na verdade são metáforas de silenciamento e só se concretizariam plenamente nas obras em que se encontram e que originaram. Mas garante um ar de thriller de suspense ao filme.  Além disso, instauram uma tensão constante à narrativa que a desconfigura, exacerbando o pretensamente banal e diluindo a pujança dramática do conflito presente na locação da casa como irradiadora dos traumas e deflagradora da obra.

Há ainda a intermigracão da focalização narrativa e do protagonismo, feita a partir de um voice over, que toma o papel de narrar discretamente, mas à força. O "em" do título em itálico é uma chave poderosa para o espectador, embora soe aparentemente despretensioso diante de "acabar com tudo". "Estou pensando" está explícito, mas tão explícito que a gente até desconfia, mas a personagem ‘sem nome’ assume a “emissão” / autoria da frase – no contexto da narrativa a frase não é pronunciada (o que é uma baita sacada do diretor e roteirista Charlie Kaufman) – o que é suficiente para nos desviar de seu ‘real’ sentido, recontextualizando-o de forma passional.

Trata-se, portanto, de um filme sobre como desafetos constroem obras carregadas de afetividade. Uma peninha de que a meia hora final não apontasse e concretizasse isso. Vale assistir, mas não vale a expectativa da catarse.

2020 - Charlie Kaufman - Netflix 

2017 - Iain Reid