A visita
Erivelto Reis
A visita
Erivelto Reis
Dá licença, seu dono de editora,
que eu ensine um pouquinho ao meu aluno? É que o conteúdo que precisa ser
construído para dar a ele a oportunidade de buscar seus sonhos e tentar,
minimamente, conquistar um espaço, construir uma carreira, qualquer que seja
ela, não está previsto na sua apostila, no seu livreto, nos seus métodos.
Não. Longe de mim dizer que o seu
livro didático é um ki-suco, um pó de refresco artificial e cancerígeno diluído
em 1000 litros de água suja nocivo que não serve pra matar a sede de
conhecimento que os meninos e meninas pobres têm e que podem ter.
Dá licença, seu capataz da obra,
olheiro do empreiteiro que é sócio ou financiador da campanha futura do
secretário ou passada do governador, pra que eu entre na sala de aula, onde
trabalho? Poderia não superfaturar, a brita, o banner, a ripa, a torneira, a
tinta. O mesmo vale pra tudo quanto e tipo de fornecedor que faz negócios com o
governo e que, quando e se, oferecer o melhor preço, que não ofereça algo de péssima
qualidade?!
Dá licença, seu influenciador,
consultor, peagadêzinho de escritório, militante de gabinete, que eu questione
a real possibilidade de pasteurizar e uniformizar as práticas de ensino? Já
perceberam que estão empurrando nossos estudantes para a servidão e o não
reconhecimento de sua cultura, de sua história e a de seu povo nos livros
escolares. Ah, sei... Você já esteve no meu lugar. Sou um professor do século
XIX, numa sociedade do século XXI, acostumada a lidar com corrupção do século XXI,
com compadrios políticos do século XXI, com neoliberalismo do século XXI, com a
desigualdade do século XXI, com complexos bilionários do século XXI,
especializados em parasitar a educação pública.
Pela sua ótica, somente eu,
professor que questiono e entendo a educação como chave para nossa soberania é
que sou do século XIX. Só eu devo me calar ante a devastação ou enquanto alguns
poucos enriquecem às custas da minha desvalorização, de minha
descredibilização. Talvez seja possível pensar que o desprezo dos ricos e
burgueses pelos mais pobres, o desejo de exclusividade, inclusive na educação,
o desejo de poder e a falta de autocrítica dos que não sendo parte da
burguesia, não detendo o controle dos meios de produção, alegram-se com o que
se possa chamar de vip, de top também sejam do século XIX. Que suas viagens, as
trocas de favores, a ausência da cobrança real de impostos sobre suas heranças
e seus negócios e seus condomínios, não foram suficientemente eficientes em
impedir que nossos meninos e meninas mais pobres sobrevivessem e com a ajuda de
professores e professoras da educação pública, galgassem espaços que somente
interessaria a vocês que pertencessem aos seus herdeiros.
Sou um professor da escola
pública ao qual suas apostilas e livros didáticos e projetos de nuvem e saliva
sistematicamente tentam silenciar ou fazer desistir. O que vier primeiro. A
quem pagam mal, para quem a isonomia é apenas uma utopia, numa carreira que vai
sendo desmontada porque os gestores impedem a realização de concursos, precarizam,
assediam, dão péssimas condições de trabalho, superlotam as salas de aula,
criam e incentivam políticas que favorecem aos entreguistas, pelegos, folgados,
espiões, arrivistas... aos que odeiam a sala de aula ou definitivamente
perceberam que não são professores, mas que por diversas razões chegaram à
escola nessa posição.
Sou visita na minha escola. Ela é
dos que de longe a comandam e não a comandam para servir em benefício da
sociedade que paga por ela e precisa dela. Sou visita na minha sala de aula,
invadida por artefatos e objetos ou superfaturados ou sem utilidade, escolhidos
à revelia de toda e qualquer formação e capacitação que eu tenha. São mordaças
tecnológicas, traquitanas sem efeito e manutenção. Sou visita na escola que é
minha, de meus alunos e do nosso povo. E o governo nos mata de sede, de raiva,
de vergonha, de humilhação e de fome, naturalmente. Pôs a vassoura atrás da
porta de cada sala de aula, para que o professor-visita se apresse a desistir,
a se calar e a ir embora e construiu um muro quase intransponível entre a
capacidade e o potencial de nossos alunos e os sonhos que poderão
realizar.
O governo é um
mau anfitrião e trata mal a todos; e ao professor, especialmente, como uma
indesejável visita. Dá licença, Seu Político, seu Gestor, senhor Empreiteiro,
dona Editora, senhora Consultora?! Vocês estão aí atravancando nossos caminhos.
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