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Poeta - escritor - cronista - produtor cultural. Professor de Português e Literaturas. Especialista em Estudos Literários pela FEUC. Especialista em Literaturas Portuguesa e Africanas pela Faculdade de Letras da UFRJ. Mestre e Doutor em Literatura Portuguesa pela UFRJ. Nascido em Goiás, na cidade de Rio Verde. Casado. Pai de três filhos.

sábado, 26 de junho de 2021

Crônica: "BREVE CONSIDERAÇÃO SOBRE GILBERTO GIL EM SEU ANIVERSÁRIO", por Erivelto Reis

 

BREVE CONSIDERAÇÃO SOBRE GILBERTO GIL

EM SEU ANIVERSÁRIO

Erivelto Reis

 

            Eu era muito garoto, cinco ou seis anos, no máximo, na primeira vez que ouvi a versão criada por Gilberto Gil “Não chore mais”, para a canção “No Woman, no Cry”, de Bob Marley, mas senti que aquela canção tinha um sentido diferente das que eu costumava ouvir em casa. Gilberto Gil não existia ainda no universo de meu imaginário. No entanto, aquela canção passou a me acompanhar desde então.

            Depois, a inesquecível e super popular canção “Sítio do Pica-pau amarelo”, abertura de um antigo programa de TV e, a partir daí, canções como “Super-homem”, “Se eu quiser falar com Deus”, “Realce”, “Palco” e “Domingo no parque” iriam somar-se ao deleite de então saber o nome do artista e ao prazer pela voz que eu conhecia, mas de um intérprete ainda sem rosto para a infância das minhas predileções musicais e das minhas compreensões.       Eu não tinha ainda ideia do que era um compositor. Não sabia que coisas belas como aquelas poderiam ser escritas pela mão de um único e talentoso indivíduo. A ideia de composição para mim era abstrata e longínqua. Talvez imaginasse a composição como uma força da natureza, um evento circunstancial como um raio, um trovão ou um pensamento desenvolvido através dos tempos e que se materializasse repentinamente aos olhos de um indivíduo que tivesse a agilidade e a sagacidade de anotar o pensamento antes que ele se perdesse. Aprendi a poesia da música antes de conhecer a música dos versos e dos poetas.

            A primeira vez que vi e ouvi Gilberto Gil foi em “Vamos fugir” e achava o máximo que se pudesse escrever ‘carregue’, ‘regue’, ‘escorregue’ e rimar com ‘regaae’ ou como em “A novidade”, rimar ‘máximo’ e ‘paradoxo’ como jogo de palavras e significados numa canção para discutir um mundo tão desigual. Nunca mais o abandonei em meu coração de fã.

            Na escola, com as professoras Suely Moura e Maria Teresa e com o professor Edson, conheci Djavan, Chico Buarque, Caetano Veloso, Cazuza, Raul Seixas, Titãs, Legião Urbana... (Gal Costa eu conheceria através de “Festa do Interior”; Zizi Possi, de “Asa morena”, que ouvi no Rádio AM; Rita Lee, através de “Minha fama de mau”, gravada com Erasmo Carlos e Maria Bethânia, através da canção “Amiga” que Bethânia gravara com Roberto Carlos). E quando chegou o momento de estudar uma letra de Gilberto Gil, justamente “Vamos fugir”, (alguns colegas disseram: “vamos fugir da escola!” E não é que alguns fugiram mesmo...) eu já sabia que estava diante de um Deus da canção popular do Brasil.

            Depois, nas aulas de História, aprendi sobre a importância política de Caetano, Gilberto Gil e outros dessa geração. (Outro dia me peguei completamente emocionado diante da coragem e da beleza de interpretação e de composição do álbum de 1973 de Ivan Lins). Sem falar na aula que assisti na faculdade, convidado por meu amigo e colega professor Cícero César sobre o documentário Uma noite em 67, no qual Gil aparece com enorme destaque. Voltando ao passado ainda mais remoto: naquela ocasião, uma das professoras, animada por eu conhecer algumas canções de Gil, se desdobrou em fazer uma análise de “Domingo no parque” em sala de aula com direito a aparelho portátil de toca-fitas e tudo. E foi como se uma peça teatral emergisse daquela letra e as personagens João, José e Juliana ganhassem vida.

            Devo muito, como brasileiro e como fã, a tudo o que Gilberto Gil representa em nossas artes, nossa música e em nossa cultura. Ele pra mim foi o mais doce dos Doces Bárbaros. Tem uma das composições de que mais gosto, “Alteza”, interpretada por Maria Bethânia e cuja participação em canções como “Purificar o Subaé” e “Foram me chamar” com Caetano e Bethânia estão entre as minhas canções preferidas. Há ainda “Mar de Copacabana”, “Drão”, “Amarra o teu arado a uma estrela”, “Parabolicamará”, “Estrela”, “Expresso 222”, “Sandra”... Os álbuns Quantá e Kaya na Gandaya e o antológico Tropicália 2 que são marcos especialíssimos para mim como público do artista.

            Tem um valor simbólico muito grande para mim o fato de que o país já o teve como Ministro da Cultura. Eu torci por ele e gostei da representatividade histórica de que um artista que foi ministro da cultura do meu país cantou e se apresentou até nas Nações Unidas e é reconhecido no mundo todo. Para minha autoestima de brasileiro foi o mesmo que senti quando a seleção brasileira de vôlei ganhou ouro nas Olimpíadas de Barcelona em 1992 ou quando a seleção brasileira de futebol ganhou a Copa do mundo em 1994. Gilberto Gil, sozinho, equipara-se a todas as nossas melhores seleções, aos nossos melhores atletas, aos brasileiros e brasileiras mais importantes em seus segmentos e ainda assim, equipara-se aos brasileiros e brasileiras mais simples e humildes e de bom coração. Ele é o melhor que nós temos.

            Tempos depois, voltaria ainda a me reencontrar com a canção de Gilberto Gil pelo viés do olhar de um grande poeta, Primitivo Paes, que entre suas canções preferidas tinha “Lamento sertanejo” e “Não chore mais”. Sei que canções como “Andar com fé” e “Esperando na janela” estão entre as mais populares do artista. E algumas vezes descobri que canções de que gostava muito como “Procissão”, que conheci na interpretação de Sérgio Reis, era uma composição de Gil. Penso que Gilberto Gil compõe um tipo de canção que ou Deus escuta ou ajuda a compor.

            Gosto de saber que ele não se corrompeu pela vaidade, que ajudou muitos artistas, que é querido pelos de seu meio, que é artista e intelectual em seu labor. Gosto de sua musicalidade, de sua sonoridade, do equilíbrio e da energia de seus versos, de sua poesia, de seu falsete, de sabê-lo leitor, de vê-lo argumentar e contar histórias, aberto a outras expressões de arte, capaz de ponderar, de ensinar e de aprender.

            Mais recentemente assisti seu magnífico show Concerto de Cordas e Máquinas de Ritmo, especialmente à sua interpretação para “Não tenho medo da morte” que é algo em que se pensar para sempre, para ficar gravado na alma. Gosto de saber que existem os Gilsons (filhos de Gil), a Preta e a Bela Gil, de testemunhar a beleza de liberdade com que Gil e suas companheiras os apoiaram como pais e de saber do carinho de seus descendentes por ele. Gosto de saber que ele escreveu “Cálice” com Chico Buarque, que tocou violão na cela da prisão e que, mesmo com medo, teve ainda mais coragem para resistir e revidar com a arte à violência e à opressão. Gosto de lembrar-me dele sem qualquer expressão de censura ou preconceito contra quem quer que seja. Gosto de saber que Gil ama o Brasil sem querer possuí-lo ou entender que lhe devam algo. Que ele ama e sempre amou democrática e despretensiosamente a esta terra e a este povo. Que, antes, usou sua arte como arauto de um tempo de compreensão e respeito por todos e todas. Gosto de pensar nele tão perto de mim, moldando a sensibilidade de meu gosto, de minha ética. Que segue firme escrevendo, cantando aquilo que generosamente me oferece (oferece a todos e todas) com o poder único de seu talento.

            Gilberto Gil é um dos grandes nomes desse país. Poeta, militante corajoso, cantor e compositor genial e de personalidade ímpar na constelação de nossas estrelas, no repertório de nossos sons e de nossas letras. É um homem de nosso tempo, à frente e depois de qualquer tempo que vier. Ele merece de cada brasileiro/a um imenso e carinhoso abraço. Gilberto Gil sempre esteve e continua lindo.

 

domingo, 20 de junho de 2021

Texto: "Breve consideração sobre Chico Buarque no dia de seu aniversário (19/6/2020)", de Erivelto Reis

 Breve consideração sobre Chico Buarque no dia de seu aniversário (19/6/2020)

Erivelto Reis

Chico Buarque agrega em torno e a partir de sua criação artística e postura muitos valores que são caros aos brasileiros: o talento para a música, a timidez que ameniza a força avassaladora de sua intelectualidade, uma predileção declarada por samba e futebol, um charme algo europeu algo nativo inquietante, uma fibra moral que se mantém ao longo de toda a sua trajetória, sem no entanto, aproximá-lo de um moralismo ou puritanismo, um olhar apuradíssimo para a estética e as inquietações do que se situaria numa perspectiva feminina do mundo; erudição para o mundo das artes e da cultura que faz com que seus livros tenham estabeleçam e contenham referências as mais diversas cujos ecos dialogam desde Eurípedes até chegar a Machado de Assis. Embora oriundo de uma classe média pertencente à elite intelectual brasileira, construiu e ressignificou alguns ideais e estereótipos cristalizando-os definitivamente no imaginário lírico do brasileiro: do malandro carioca, do trabalhador nordestino explorado, do homem suburbano amedrontado diante da proximidade do algoz, uma passionalidade latente e trágica nas relações afetivas, ironia e rebeldia arquitetadas, forjadas milimetricamente, não deliberadas para expor a obtusidade e violência dos poderosos brasileiros; coragem e e lirismo para falar da dor, do assassinato, da tragédia social e histórica desse país desde o negro escravizado e torturado até a execução execrável e covarde de uma mãe que só buscava por seu filho. Chico Buarque dialoga com o teatro, a literatura a poesia, a música o cinema numa antropologia da arte de tal forma grandiosa que o equipararia à sede de Mário de Andrade em conhecer a real face de nossa arte, de nossa língua e cultura. Mesmo no olho do furacão da censura que se instaurou no país, jamais se calou e foi capaz de saudar o grandioso povo português no momento exato de sua revolução. Foi íntegro e nunca ambíguo quanto à sua escolha pelo pensamento de esquerda e associado às causas democráticas em favor do povo. Banhou-se nas águas do Leblon, constituiu uma linda família, ganhou e perdeu festivais, foi vaiado, estudado, endeusado e execrado. Angariou amizades desde entre as pessoas mais simples até líderes mundiais, compôs canções que estão entre as mais importantes em nossa música, ganhou inimigos entre os poderosos, intelectuais e entre os que por preguiça, incapacidade ou desinteresse rotulam tudo o que não entendem (ou que os denuncie e aos seus atos perversos) de "hermético". Salve, Chico Buarque, o mais antipolêmico (porque discreto) e contundente (porque combativo e arguto militante na arte e na vida) compositor da épica trajetória brasileira no século XX.

Texto: "Sobre os 500.000 mortos", de Erivelto Reis

 Sobre os 500.000 mortos

Erivelto Reis 

Num mar de repleto de náufragos e mortos me debato. São 500.000 pessoas que eram o amor de alguém. Não rezo, e o mar é fundo. É de fossa e abjeta é a água que nos afoga e o entendimento de muitos dos que estão vivos é tão raso, superficial e cruel que penso que estão cegos e surdos à razão e não sabem como sua neutralidade enquanto boiam, acaba por afogar 2000, 2500 pessoas por dia, (sem contar os desalentados, os desempregados, os desamparados pela ausência de políticas sociais). Ei-los estúpidos em pele de sensatos e não sabem nadar e não sabem que não sabem de nada. São boias humanas que os canalhas usarão pra se safar. Os canalhas não virão se apoiar em mim porque sabem que farei justiça, ainda que seja a última coisa que eu faça. Quando for minha vez de submergir sem fôlego e para sempre, lamentarei profundamente não ter conseguido alertar o suficiente os que amei e os demais para as violências que cometeram - mesmo sem querer -, contra os ideais de liberdade que tanto prezo e pelos quais tanto lutei. Para evitar o que eu penso, eu sei de vários que deixaram de ler o que escrevo entre um meme e outro. Meu amor e meu respeito por essas pessoas tão intransigentemente seguras de suas certezas manipuladas pelas mentiras que ouviram e leram por aí, e que inexplicavelmente as convenceu, terá sido como a cicuta que Sócrates bebeu de bom grado ante o horror de um mundo aético, injusto e acrítico. De nada valerá qualquer filosofia, resquício de amor, arte, literatura ou remorso que restar como herança aos que me mataram mais quando seus discursos serviram ao opressor, do que quando doarem meu último livro e deletarem meu último arquivo, enquanto esquecem, neblina e vento frio, as palavras gastas de tão repetidas dos apelos que eu fiz em vida.

terça-feira, 8 de junho de 2021

Poema: "Vinho do Porto", de Erivelto Reis

 

Vinho do Porto

Erivelto Reis

 

A rua como uma passarela de pessoas sem rumo

Com almas amedrontadas

Escondidas lá no fundo.

Há um espírito livre aprisionado

Pela semântica narcísica

Que diz e age como se todos

Os verbos e versos fossem reflexivos.

Queria abraçar meus amigos

E dizer-lhes que o melhor está por vir.

Não posso fazer isso.

Não tenho qualquer certeza.

E muitos ficaram no passado

Restritos entre datas de nascimento e morte.

Nomes circunscritos.

No momento, toda canção é fúnebre,

Toda palavra é lamento,

Todo olhar é um pedido de ajuda.

Mandaram um áudio.

As novas ordens serão dadas

Na próxima reunião on-line.

Arrombarão nossos armários na segunda.

A literatura por vezes tratada

De forma rude, reles, rasa!

Eles fingem empatia,

Apenas fingem estar na nossa pele...

Se puder, fique em casa!

Proteja sua saúde, mas saiba:

O autoritarismo brota como arbusto vigoroso

Entre as pedras, hera do muro, do lodo,

Do limo e, em alguns casos,

Em jardins outrora tão bonitos.

Se puder, reaja.

Eu ia te mandar um e-mail,

Perdi tempo, perdi a senha...

O Banco mandou carta de cobrança!

Os correios não me entregam o que encomendo,

Mas sabem o meu endereço quando eu devo.

Dizem que é área de risco

Agravada por uma mancha criminal:

A memória ficou cheia ou então escassa.

Tinha uma ideia de armazenar o poema na nuvem.

No entanto, vem o cotidiano e invade e devasta o poema.

Tempera um copo do que deveria ser

Pura água mineral. Turva.

Com meio quilo de refinado sal.

A sede aumenta na presença do líquido...

Esperança desmorona, não importa!

Quanto mais me espiritualizo ou qualifico

Mais vejo que não sei de nada.

Eu queria viajar contigo.

Arrumar um novo emprego, um novo hobby,

Compartilhar a fórmula

Que inventei para a produção artesanal

De vinho do Porto.

Ano que vem nos veremos.

Se você ainda estiver vivo,

Se eu não estiver mais morto...

terça-feira, 1 de junho de 2021

Poema: "Insular", de Erivelto Reis

 Insular

Erivelto Reis
Para Judite Canha Fernandes e Jorge Valentim
Há lugares que só existem na Memória ou na Imaginação.
Há lugares apenas tangíveis à memória ou à ficção
Há uma história que se nega aos que dela participam
Há um espaço desenhado no fio da faca...
Lâmina
Não intimida ao ser que sangra
E tem amor de sobra,
Como tanta terra que não está no mapa.
Para semear quem tiver vontade de escrever seu destino.
Assusta porque a viagem é longa,
É para Sul, é para o centro,
É para dentro.
No núcleo das nossas vontades e inquietudes
O caminho é um vale, atravessa um monte,
De onde talvez se avistem algumas das nossas virtudes.
Talvez, so-ro-ri-da-de...
Talvez hu-ma-ni-da-de...
No arquipélago de nossas insônias
Alguém tece, alguém borda, alguém luta,
Alguém morre, alguém escreve.
Há quem tenha voz e vez apenas por ser homem
E há tanta gente tenaz
Que o fogo, a dor e o medo consomem.
É preciso ser forte, é preciso estar ativa.
É preciso ter cuidado
Ser mulher, é ser fruto da volúpia
Entre o oceano e o continente
É testemunhar, insular,
O presente, o futuro e o passado.
É ser como uma ilha
Cercada de náufragos por todos os lados.