Quem sou eu

Minha foto
Poeta - escritor - cronista - produtor cultural. Professor de Português e Literaturas. Especialista em Estudos Literários pela FEUC. Especialista em Literaturas Portuguesa e Africanas pela Faculdade de Letras da UFRJ. Mestre e Doutor em Literatura Portuguesa pela UFRJ. Nascido em Goiás, na cidade de Rio Verde. Casado. Pai de três filhos.

terça-feira, 29 de janeiro de 2019

Crônica: "Uma carta para meu irmão trabalhador", de Erivelto Reis





UMA CARTA PARA MEU IRMÃO TRABALHADOR
Erivelto Reis

Queria escrever uma carta para o meu irmão trabalhador que nem eu. Não porque eu saiba escrever, ou escreva melhor ou mais bonito, ou porque ele, talvez, não saiba nada sobre o que eu vou dizer a ele, ou nada entenda sobre os perigos de dizer o que ele tem dito e de escrever o que ele tem escrito.
Queria escrever uma carta. Só uma. Para o meu irmão trabalhador que nem eu. Não porque sejamos amigos, ou sejamos colegas ou trabalhemos no mesmo ramo, ou estejamos no mesmo barco, ou porque sejamos torcedores do mesmo time ou sonhemos com as mesmas coisas para o país. Também não seria porque pensemos de forma distinta, ou sonhemos com ideais completa ou parcialmente diferentes. Não porque eu não tenha tanta experiência, não porque ele não tenha o mesmo conhecimento que eu. Não porque ele talvez suponha que não estejamos no mesmo barco.
Queria escrever ao meu irmão, trabalhador que nem eu, uma carta. Uma carta que perdesse de todo a sua intenção de aviso, de conselho de alerta, de pedido, de interseção. Uma carta que perdesse a finalidade de chamar sua atenção e exercesse única, exclusiva e preponderantemente a função de servir como um alento, como uma expressão de afeto, como um abraço.
Ainda que meu irmão trabalhador me confrontasse, ainda que ele me desprezasse, ainda que não me entendesse, que me julgasse, que me excluísse... Ainda que ninguém soubesse. Ou, em sabendo, que não curtisse, não comentasse, nem compartilhasse. Ainda que criticasse. Queria escrever uma carta que fosse uma prece a quem não rezasse, que fosse uma reza por quem não acreditasse, que fosse uma súplica por quem não lamentasse. Que fosse silêncio e um olhar por aqueles a quem não se olhasse. Queria que meu irmão trabalhador que nem eu, apenas parasse, por um instante, e que repensasse.
Queria escrever uma carta que ensinasse. Ao meu irmão, trabalhador que nem eu, como é infinita a sua possibilidade. Como ele é importante em sua função, em sua alegria, em sua família, em sua comunidade, em nosso trabalho, em sua missão para todos os que dele dependem, para todos os que com ele convivem, para todos como eu, que nele se espelham. Para dizer a ele como são duras as coisas tristes de que ele se aproxima talvez sem querer, talvez sem perceber, talvez querendo, sabendo, percebendo. Mas que é, também, possível mudar de ideia, ponderar. Rever-se. Sei lá. Retroceder.
Não escrevo, pois não me cabe esse direito. Não escrevo porque não me cabe essa função. Mas, sendo amigo, caberia. Mas, sendo irmão, trabalhador que nem eu aceitaria a empreitada. Caminharia por quanto tempo e a que distância, desde que pudesse fazê-lo perceber a antipatia de certas coisas, que certas coisas provocam. A dúvida é: se meu irmão iria querer. Iria me entender e se caminharia comigo. Se me veria como amigo. Depois que lhe escrevesse e lhe mostrasse que os que chama de inimigos, talvez assim não sejam. Se os que elege como dignos talvez nem tanto sejam. E que não vale a pena atrair pra si a imagem dos que defende ou ataca. Sua imagem pessoal e sua trajetória de trabalhador, meu amigo e meu irmão, já falam por si só.
Não pretenderia demovê-lo de seus valores, de seus princípios. Não pretenderia convencê-lo, doutriná-lo, exortá-lo, insultá-lo, limitá-lo. Pretenderia, contudo, sensibilizá-lo. Buscaria afastar de sua figura pública de trabalhador, meu irmão, o amargor da banalidade de um mal com o qual eu sei que ele não compactua. Que ele não profere, que ele não pratica, mas que o circundam, a partir de textos e imagens dos quais ele se acerca. Talvez não por pensar diferente... Talvez apenas por querer expressar de uma forma dinâmica, o que no dinamismo da informação carrega também fúria, ressentimento, mentira, calúnia, desfaçatez, manipulação e ódio.
Queria que ele escrevesse poesia, salmos, cânticos. Queria mais do seu humor de trabalhador como eu. Queria mais da resenha do seu time de coração. Queria mais das imagens engraçadas e dos seus trocadilhos. Queria mais das provocações do dia a dia de nosso trabalho comum; mais de sua família, mais de seus passeios, mais de seus amigos. Ainda que as coisas que publica e compartilha fossem de sua autoria ou ainda que chegassem ao encontro das lacunas do que sinto e do que penso, seria dele que eu quereria mais notícias. E não me juntaria a ele numa voz solista de paladino ou num coral gigante de tenores para bradar contra quem quer que fosse. Bradaríamos, sim, contra a fome, a falta de trabalho, de oportunidades, de salário, de emprego, de respeito. Discutiríamos ideias e não pessoas. Talvez, Fernando Pessoa. Talvez, só conversássemos à toa.
Queria que minha carta fosse rasgada, queimada, trancafiada num baú de trecos sem valor. Queria que não precisasse ser escrita e, muito menos, lida. Queria uma nova perspectiva de sociedade e de vida para mim e para meu irmão trabalhador que nem eu.
Queria compreender mais e melhor. Que me desculpasse se lesse em minhas palavras quaisquer intenções que não a de abraçá-lo. Queria que o espaço para o pensamento contraditório não servisse nunca de palco para a maledicência da corrupção. Não alego estar com a verdade, não pretendo estar com a razão. Queria direcionar minhas palavras, meus bons sentimentos, minha boa intenção, meu silêncio complacente, meus respeitos, meu afago, meu carinho, meu afeto e minha admiração a cada trabalhador e trabalhadora: meus amigos, meus irmãos. Façamos de nossas palavras o espaço em que se compartilha o pão.

quinta-feira, 24 de janeiro de 2019

Poema: "exilado", de Erivelto Reis

exilado
Erivelto Reis
É o primeiro a ir
sendo ido
nessa nova fase antiga
de nós já tão conhecida
é preciso sair pra preservar a própria vida
é o primeiro que foge
é o primeiro que sai fugido
é o primeiro que não precisando
precisa fugir.
Não é o primeiro a temer,
não é o primeiro que sabe
que está marcado para morrer
Não é o único
não será o último.
Infelizmente, podes crer.
É teu filho na malha da noite
preso na angústia
de não poder voltar pra casa
porque alguém decidiu
Não gostar de sua cara,
de suas palavras, do seu jeito de ser.
é o primeiro a ir
sendo ido
outros já foram carregados
Outros já foram mareados
outras já foram marielles,
já sentiram na própria pele...
Como é reles
a política que se faz sobre a morte
de inocentes, de oponentes.
Onde falta ideia, sobra a ira,
a mira, a moral inconsistente.
é o primeiro a ir
e, sabemos,
infelizmente não será o último
a sair, a sucumbir,
a já ir...

Crônica: "Armorial", de Erivelto Reis

Xilogravura: Perron Ramos (Pernambuco) sobre a obra
 Abaporu (1928), de Tarsila do Amaral


ARMORIAL: A MÚSICA DA ALMA
DA ARTE DO POVO BRASILEIRO


  Para Daniel Marcos Martins e Cinda Gonda:
Professores armoriais brasileiros
[que nem eu...]

Erivelto Reis
Em memória de
Primitivo Paes e José de Arimatéa


O brasileiro, indubitavelmente, irá se comover com a música e com a arte Armorial, tão logo tenha contato com ela. Ela é uma importante vertente de um Universo cultural brasileiro. Remete às nossas raízes como civilização. Liga pontos vitais do imaginário de nosso folclore, do nosso mítico, de nossa miscigenação. Seus instrumentos são a viola, a rabeca, o pífano, as mãos e ar vital dos poetas, dos músicos, dos artistas populares brasileiros. Seu retrato falado são as paisagens do interior do espírito humano e as xilogravuras de todos os cordéis. Tem o movimento do mar e dos rios e do corpo mamulengo que se agita na gana da vida.
Parece estar em Ravel e seu bolero magistral e está em Luiz e sua Asa Branca. Nos cabelos brancos do nordestino mais cansado e combalido e no couro do gibão e nas chinelas das crianças. Está em Milton Nascimento e seu contracanto celestial e no metálico da voz de Zé Ramalho e nos falsetes de Belchior. Está no ritmo da Tropicana de Alceu e em sua Anunciação. Está no esganiçado crítico de Tom Zé e na sacra fonêmica missa do canto de Bethânia. Está no espaço pretensamente proibido que exista na sonoridade sempre viva dos versos de João Cabral. Armorial é Guimarães Rosa e as veredas do seu sertão. As vidas secas de Graciliano, a Maria Moura de Rachel de Queiroz.
A música armorial é a ópera do nordestino forte, dos habitantes primordiais.  O “Abaporu”, de Tarsila e “Os retirantes”, de Portinari, certamente estariam ouvindo uma canção armorial. Ela embala tudo que Suassuna escreveu e pulsa em todo coco, embolada, catira, repente que se ouça de repente. É silente como o som da rede e do encontro das águas com a jangada do pescador.
Sincrética: apresenta nuances representativos de nossas matrizes, em caleidoscópio de cores e sons intercambiáveis ininterruptamente, convida à sinestesia, tem em si a fragrância, o tato de todos os elementos e a volatilidade que lhes seja própria. É o medo da morte e a rutilância da fé. O pacto com o tinhoso e o batismo de pia com nome de “Raimundo”, “Francisco”, “Maria” e “José”.
Espelha nossa alegria, solar e intensa; e nossa tristeza implícita, eco redivivo de nossa colonização traumática. Irmana campo e floresta, litoral e agreste mais árido. Dialoga ainda quando aparentemente à distância , com o espaço em que a cidade se agiganta e da solidão dos homens que a constroem. Tem a cor da pele de cada brasileiro e do tanto de sangue que já correu nesse chão. A dor da cova rasa do filho, a dor da tocaia contra o pai e irmão. A seca, a fome e a fuga pra outro rincão: o fogo do sol que não se apaga na luz da memória da retina do retirante. Armorial é não possuir a terra, que esta não é pra ter dono: esta é feita pra se viver nela e dela se cobrir quando o destino se lembrar de você.
Armorial é a irmã mais nova dos sons tribais de cada micro nação-estado em África e da andina cordilheira e seu povo. Voz personificada de um coral composto pelo casamento das forças naturais que eclodem do encontro das águas, do vento na caatinga, do lamento das árvores em florestas em estado de descoberta, do zunido dos insetos que polinizam o cerrado, e do capinzal que balança ao som das chuvas dos pampas. Ritual e ruptura. O sagrado e os que o reverenciam agregados à mesma nota.
Armorial. Todo brasileiro que nunca ouviu, terá a nítida impressão de já haver ouvido seus sons. Ela tem o rosto de nossos pais, de nossos avós, de nossos ancestrais. Ela tem o cheiro dos produtos de nossa terra. Da solidez e da aridez do chão prenhe dos alimentos que sustentam esse país em resistência perpétua ao desejo daqueles que pretendem escravizar nossos sonhos na labuta de sua má vontade.  As rendas, o trançar do laço, cada objeto, cada cordel e cada pequeno mimo. As obras de Vitalino, as ligas camponesas, os versos de Patativa, a história e a arte de Primitivo, a força de Chico Julião e a valentia de Virgulino. Armorial é semente de uma planta que brota dessa terra seca em que parece que todo cabra já nasce e cresce marcado para morrer.
É o trabalho do sertanejo, o aboio do vaqueiro, o canto de labor das lavadeiras, o choro das carpideiras, o rosário em estado de prece, o ritmo do terço, na prece à mãe santíssima. O uivo da assombração, a fúria perpétua de todos os demônios aprisionados em escala pentatônica, o som dos animais domésticos brincando nos terreiros com as crianças mais livres e aprisionadas do mundo; e daqueles que lidam e fornecem o sustento e alimento das famílias brasileiras.
É o som de todas as profissões, o ruído dos evangelhos, dos passos dos santos, sinfonia de milagres e ladainha dos orixás. É onírica e telúrica. É o canto gregoriano do silêncio dos povos em remissão de pecados que jamais cometeram ou que jamais confessaram. É o farfalhar das folhas, a alegria das crianças que crescem com a força de quem não era nem pra vingar, num solo com donos de menos, oprimindo gente demais. Casa-se com a luz mais brilhante que penetra os mais longínquos lugares naturais, desnaturais e antinaturais que possa haver nesse país.
É o ritmo do coração dos homens que têm coragem e das mulheres que já nascem sabendo amar. É o oratório dos santos, é a solidão dos mártires. Armorial. Imemorial e atemporal é a sinfonia do que preservas. É o som da fome e da fartura. É a valentia do brasileiro bom de briga, da coragem dos espertos e afoitos e a formosura de todas as mulheres. Música e arte armorial estão no DNA e no coração: arte primeira da alma de cada brasileiro.



VERSÃO ESTENDIDA



ARMORIAL: A MÚSICA DA ALMA
DA ARTE DO POVO BRASILEIRO


  Para Daniel Marcos Martins e Cinda Gonda:
Professores armoriais brasileiros
[que nem eu...]

Erivelto Reis
Em memória de
Primitivo Paes e José de Arimatéa


O brasileiro, indubitavelmente, irá se comover com a música e com a arte Armorial, tão logo tenha contato com ela. Ela é uma importante vertente de um Universo cultural brasileiro. Remete às nossas raízes como civilização. Liga pontos vitais do imaginário de nosso folclore, do nosso mítico, de nossa miscigenação. Seus instrumentos são a viola, a rabeca, o pífano, as mãos e ar vital dos poetas, dos músicos, dos artistas populares brasileiros. Seu retrato falado são as paisagens do interior do espírito humano e as xilogravuras de todos os cordéis. Tem o movimento do mar e dos rios e do corpo Mamulengo que se agita na gana da vida. Armorial é chic, é vintage, é xique-xique.
Parece estar em Ravel e seu bolero magistral e está em Luiz e sua Asa Branca. Na Banda Pau e Corda, em Zabumbê-bum-á de Hermeto Pascoal, na corda de berimbau, em Africadeus de Naná Vasconcelos e em Carlinhos Brown. Na “Alegria-Alegria” de Caetano, no “Domingo no Parque”, de Gil, no “Ponteio” de Edu Lobo, na “Disparada” de Vandré e Theo de Barros, nas Cordas vivas de Heraldo do Monte. Eterno como areia em Diana Pequeno; evoca as 20 palavras ao redor do sol de Cátia de França. Está em Teca Calazans e Ricardo Vilas e seu antológico Teca e Ricardo (1974), em Amanheceremos de Jayme Allen e Nair de Cândia; está em Metalmadeira, de Marco Bosco; no Canto do Tempo, de Willian Senna, na releitura afro pop de Jorge Degas & Marcelo Salazar em Muxima.
Armorial está na Frauta de Pã, de Carlos Walker, o Trem dos Condenados de Marcus Vinicius, na Chapada de Corisco de Clodo, Climério e Clésio; e na Cantoria de Elomar, Vital Farias, Geraldo Azevedo e Xangai. Em Caruá, de Zé da Flauta e Paulo Rafael. Está no Sub Reino dos Metazoários, de Marconi Notaro, em Manduka e seu Brasil 1500, em Joyce e seu Passarinho Urbano, com a subversão da Coca-Cola verde, em Da Terra Firme, Um Canto Forte, de Edigar Mão Branca; em Paulinho Pedra Azul e seu Uma Janela Dentro dos Meus Olhos, no Grupo Paranga e seu Chora Viola, Canta Coração.
Está na “Feira de Mangaio”, de Sivuca e Glorinha Gadelha, na Orquestra e no Quinteto Armorial, em Cussy de Almeida, em Guerra Peixe, no Pavão Misterioso de Ednardo, em Mestre Ambrósio, em Comadre Fulozinha, no Zunido da Mata de Renata Rosa, na “Força que nunca seca”, de Chico César, no “Sangue de Bairro” de Chico Science e Nação Zumbi, no “Relampiano” de Lenine, na Saramandaia de Dias Gomes, na “Romaria” de Renato Teixeira, e até no “Coração de luto”, de Teixeirinha.
Armorial está no “Cavaleiro e os moinhos”, de João Bosco e Aldir Blanc, na Cantilena das Bachianas do maestro Villa-Lobos, no estudo de Câmara Cascudo, na Terra, vento e caminho, de Dércio Marques.  Nas canções de Gesta na Chave de ouro do reino do vai-não-volta. Está no Baiano e nos novos caetanos, está em Psychedelic Pernambuco, na Caiana dos Crioulos, nas Catadoras das Mangabas, nas Ganhadeiras de Itapuã, no Samba Chula de São Braz; nas Águas de São Francisco, de Carlos Pita, no Cavaleiro Macunaíma e nas Carrancas, de João Bá, na Erva Cidreira de Doroty Marques, no Venta moinho de João Arruda, nas Cantigas de Socorro Lira. A Gota d’água de Chico Buarque e Paulo Pontes.
Está em Fabiano Nascimento e seu Tempo dos Mestres; em Priscila Ermel e seus Campo dos Sonhos e Cine Mato Gráfico; em Antônio José Madureira e seu Violão; no Quarteto Romançal e o antológico Ancestral; em Onça Combo e o inquietante som de “Em diáspora”; em “Um dia estranho”, do Grupo Rua. Está na Grande Missa Armorial de Capiba, no Cordel do Fogo Encantado e também na Missa do Vaqueiro do Quinteto Violado. Está em “Carcará”, de João do Vale e José Cândido e em “Mora na Filosofia”, de Arnaldo Passos e Monsueto Menezes.
Armoriais são José Dumont, Marcélia Cartaxo, Tânia Alves, Elba Ramalho, Amelinha, Nelson Xavier, Domingos Montagner, Dominguinhos, Gonzaguinha, Irmã Dulce, Fernanda Montenegro, João Ubaldo Ribeiro, Bibi Ferreira e Fagner.  Poetas e repentistas: Geraldo do Norte, Catulo da Paixão Cearense, Otacílio Batista, Oliveira de Panelas, Zé do Norte, Pinto do Monteiro, Zé Pequeno, Jessier Quirino, Juvenal Galeno e Ferreira Gullar.
Armorial está em “O menino da porteira”, na interpretação de Marlui Miranda; em “Gavião”, de Siba, nos Rabequeiros de Pernambuco; na Folia de Santo de Alessandra Leão, no Passo Elétrico de Passo Torto, na Capoeira de Besouro, de Paulo César Pinheiro, em “Amor Cinza”, em todo o Cinco Sentidos de Mateus Aleluia. Está no Samba de Gira do Grupo Bongar; no Coco de Toré, de Pandeiro do Mestre; no Maçalê de Tiganá Santana. Nas “12 baladas”, de Jorge Cabeleira, no Dia em Que Seremos Todos Inúteis; em Paraibô, de Hugo Filho; em Oásis de Vidro, de Rafael Dutra; em Ancanga, de Juçara Marçal & Cadu Tenório; em O Canto dos Escravos, de Clementina de Jesus, Doca e Geraldo Filme; em “Balada para quem nunca morre”, de Lula Côrtes & Jarbas Mariz; em “Note”, de Canções Velhas Para Embrulhar Peixes; em Pitanga em Pé de Amora, de Ponte Para Si.
Armorial está em Certa Manhã Acordei de Sonhos Intranquilos, de Otto; em Silencia, de Ceumar; em Mazuca de Agrestina, em Cantando com o Sol, do Grupo Fethxa; no Coco de Roda, de Zé de Teté; em Os Afro-Sambas; de Baden Powell e Vinicius de Moraes; em Berimbau e Percussão, de Papete; Almir Sater em “Tocando em frente”; o Frevo de Índio, de Celso Mendes.
Armorial é o neoespírito antimedieval.  Está em Nei Leandro de Castro, João Ferreira de Lima, nos compêndios de Marco Haurélio, em Leandro Gomes de Barros e nos cordéis que criaram. Está em Perron Ramos, Gilvan Sâmico, Francisco Borges, Manuel Suassuna e nos emblemas armoriais, heráldica de nossa terra, que são as suas xilogravuras.
Armorial são os cabelos brancos do nordestino mais cansado e combalido e no couro do gibão e nas chinelas das crianças. Está em Milton Nascimento e seu contracanto celestial e no metálico da voz de Zé Ramalho, nos falsetes e na “Divina comédia humana” de Belchior. Está no ritmo da Tropicana de Alceu e em sua Anunciação. Está no esganiçado crítico de Tom Zé, Jards Macalé, Arrigo Barnabé, Itamar Assumpção, Jose Miguel Wisnick, Luiz Tatit também é.
Armorial é a sacra fonêmica missa do canto de Maria Bethânia. Está no espaço pretensamente proibido que exista na sonoridade sempre viva dos versos de João Cabral. Armorial é Guimarães Rosa e as veredas do seu sertão. As vidas secas de Graciliano, a Maria Moura de Rachel de Queiroz.
A música armorial é a ópera do nordestino forte, dos habitantes primordiais.                    O “Abaporu”, de Tarsila e “Os retirantes”, de Portinari, certamente estariam ouvindo uma canção armorial. Ela embala tudo que Ariano Suassuna (este Gil Vicente armorial) escreveu. Pulsa em todo coco, embolada, catira, num rap e num repente que se ouçam de repente. É silente como o som da rede e do encontro das águas com a jangada do pescador.
Sincrética: apresenta nuances representativos de nossas matrizes, em caleidoscópio de cores e sons intercambiáveis ininterruptamente, convida à sinestesia, tem em si a fragrância, o tato de todos os elementos e a volatilidade que lhes seja própria. É o medo da morte e a rutilância da fé. O pacto com o tinhoso e o batismo de pia com nome de “Raimundo”, “Francisco”, “Maria” e “José”.
Espelha nossa alegria, solar e intensa; e nossa tristeza implícita, eco redivivo de nossa colonização traumática. Irmana campo e floresta, litoral e agreste mais árido. Dialoga ainda quando aparentemente à distância , com o espaço em que a cidade se agiganta e da solidão dos homens que a constroem. Tem a cor da pele de cada brasileiro e do tanto de sangue que já correu nesse chão. A dor da cova rasa do filho, a dor da tocaia contra o pai e irmão. A seca, a fome e a fuga pra outro rincão: o fogo do sol que não se apaga na luz da memória da retina do retirante. Armorial é não possuir a terra, que esta não é pra ter dono: esta é feita pra se viver nela e dela se cobrir quando o destino se lembrar de você.
Armorial é a irmã mais nova dos sons tribais de cada micro nação-estado em África e da andina cordilheira e seu povo. Voz personificada de um coral composto pelo casamento das forças naturais que eclodem do encontro das águas, do vento na caatinga, do lamento das árvores em florestas em estado de descoberta, do zunido dos insetos que polinizam o cerrado, e do capinzal que balança ao som das chuvas dos pampas. Ritual e ruptura. O sagrado e os que o reverenciam agregados à mesma nota.
Armorial. Todo brasileiro que nunca ouviu, terá a nítida impressão de já haver ouvido seus sons. Ela tem o rosto de nossos pais, de nossos avós, de nossos ancestrais. Ela tem o cheiro dos produtos de nossa terra. Da solidez e da aridez do chão prenhe dos alimentos que sustentam esse país em resistência perpétua ao desejo daqueles que pretendem escravizar nossos sonhos na labuta de sua má vontade.  As rendas, o trançar do laço, cada objeto, cada cordel e cada pequeno mimo.
As obras de Vitalino, as ligas camponesas, os versos de Patativa, a história e a arte de Primitivo, a força de Chico Julião e a valentia de Virgulino. Armorial é semente de uma planta que brota dessa terra seca em que parece que todo cabra já nasce e cresce marcado para morrer.
É o trabalho do sertanejo, o aboio do vaqueiro, o canto de labor das lavadeiras, o choro das carpideiras, o rosário em estado de prece, o ritmo do terço, na prece à mãe santíssima. O uivo da assombração, a fúria perpétua de todos os demônios aprisionados em escala pentatônica, o som dos animais domésticos brincando nos terreiros com as crianças mais livres e aprisionadas do mundo; e daqueles que lidam e fornecem o sustento e alimento das famílias brasileiras.
É o som de todas as profissões, o ruído dos evangelhos, dos passos dos santos, sinfonia de milagres e ladainha dos orixás. É onírica e telúrica. É o canto gregoriano do silêncio dos povos em remissão de pecados que jamais cometeram ou que jamais confessaram. É o farfalhar das folhas, a alegria das crianças que crescem com a força de quem não era nem pra vingar, num solo com donos de menos, oprimindo gente demais. Casa-se com a luz mais brilhante que penetra os mais longínquos lugares naturais, desnaturais e antinaturais que possa haver nesse país.
É o ritmo do coração dos homens que têm coragem e das mulheres que já nascem sabendo amar. É o oratório dos santos, é a solidão dos mártires. Armorial. Imemorial e atemporal é a sinfonia do que preservas. É o som da fome e da fartura. É a valentia do brasileiro bom de briga, da coragem dos espertos e afoitos e a formosura de todas as mulheres. Música e arte armorial estão no DNA e no coração: arte primeira da alma de cada brasileiro.