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Poeta - escritor - cronista - produtor cultural. Professor de Português e Literaturas. Especialista em Estudos Literários pela FEUC. Especialista em Literaturas Portuguesa e Africanas pela Faculdade de Letras da UFRJ. Mestre e Doutor em Literatura Portuguesa pela UFRJ. Nascido em Goiás, na cidade de Rio Verde. Casado. Pai de três filhos.

segunda-feira, 8 de agosto de 2022

Texto: "É preciso reverenciar “Narciso”: Caetano Veloso – 80 anos", de Erivelto Reis

 

É preciso reverenciar “Narciso”: Caetano Veloso – 80 anos

Erivelto Reis

 

Caetano é ou pode parecer ou pode assumir a postura de caricatura crítica contra um país em muitos aspectos sem autocrítica, careta, conservador.

Caetano é o mais decolonizado compositor brasileiro de uma visão periférica que pretende colocar a alma mística e múltipla das sensibilidades da arte brasileira em evidência. Traçou e executou dezenas de expedições de resgate e reconhecimento aos grandes ícones da arte brasileira, de nosso pensamento mais genuíno e criativo. Aguçou, ampliou e compartilhou horizontes de nosso olhar. De Guimarães Rosa aos irmãos Campos; de Glauber Rocha a Oswald de Andrade; de Luiz Gonzaga a Roberto Carlos; de Londres a Santo Amaro; de Realengo ao Haiti.  Soube, com generosidade e intensidade, ler os poetas de seu tempo e os que vieram antes e lhes pontuou a ambos o epicentro de seu fazer poético. Em alguns, simplesmente, emulando a essência, ou o perfume de suas palavras. Em outros, mergulhando e reposicionando metáforas esquecidas e incompreendidas. Ele próprio, enquanto poeta da composição, autor de metáforas de mil matrioskas.

Foi rebelde, foi cirúrgico, foi abusado, foi e é generoso com os novatos. Estabeleceu alianças em favor da música, reverenciou o pop, o samba, o rock, o baião, o axé. Tem um som que é inconfundível e uma voz cuja melodia, entre o falsete e o cristalino da emissão, parece oscilar fora do controle de seu emissor. Mas é só uma impressão: uma assinatura vocal. Caetano controla tudo que é seu talento. Um canto com doçura de voz materna a embalar os filhos ecoa na entrelinha de cada nota.  Universal e circunstancial. Se queres ser universal, canta a tua aldeia, tomando por empréstimo Tolstói. Ou vire um meme, um viral. Caetano já passou atravessou essa estrada que nunca passou.

Sua aguçadíssima inteligência, aliada a uma erudição que faz conversar o cinema, com a filosofia, com as artes plásticas, com a literatura, com a história resulta na plasticidade de cada apresentação tornando-as únicas experiências de imersão e deleite: Caetano tem uma semiose particular pra letra, pra música e para a apresentação que faz nos palcos ao vivo ou pela internet ou pela televisão. É o conjunto do que o artista propõe a apoteose de sua performance. Isoladamente, cada componente pode gerar no público a percepção de que o artista ou está se inventando ou avançando em seu projeto de brasilidade: um projeto antropológico de investigar e denunciar o belo, o abstrato e o periférico que há na alma brasileira. Não como uma espécie de antropofagia ou uma anarquia artística: “o que me doeu naquele momento foi perceber que eu me expressava numa língua cuja literatura ainda não é suficientemente conhecida no mundo”, disse certa vez o artista –, mas como uma consagração do culto à força da palavra, da música e da interpretação.

Polêmico quando preciso, resistente e corajoso. Caetano sobreviveu à violência psicológica da ditadura e a denunciou. Virou símbolo de resistência e continuou denunciando um país cujos poderosos são violentos, preconceituosos, corruptos e se escondem na barra dos discursos conservadores e hipócritas.

Reverenciou e colocou o rei na pauta da MPB, tropicalizou, lacrou, confundiu-se às vezes, e não cancelou ninguém. Sempre abriu espaço para o diálogo com as mais diversas vertentes da música popular. Transitou entre o barroco e o realismo, exaltou amigos, bateu de frente com a crítica reacionária e mal-intencionada em festivais da canção. Respondeu com humildade aos desaviados, e com força e ironia aos teleguiados. Vê-lo conversar é ter a certeza de que ele pensou mil vezes antes de falar e que, no exato momento em que fala, está descobrindo um novo caminho para o pensamento.

Ao lado de Gil, seu amigo, eternizou uma grande parceria artística, marco de grande resistência contra o obscurantismo e a prepotência dos arrogantes, de seus lacaios e dos poderosos.  Tornou-se um símbolo do Brasil no mundo: “Futebol”, “Rio de Janeiro”, “Praias”, “Bossa Nova”, “Caetano Veloso”, talvez não nessa ordem.

Múltiplo, mais do que ser utilizado como um modelo ou parâmetro para os novos compositores, compor como Caetano, ou compor algo de que Caetano gostasse ou mesmo gravasse – “caetanear o que há de bom” – não é tarefa fácil, tornou-se uma meta, um acontecimento. Caetano sabe disso, e abraça pelo canto, pela participação e pela reinterpretação de canções. É a forma de parceria que oferece mais continuamente. Além de expressar apreço por seus contemporâneos e, por vezes, surpreender em suas regravações como nas ocasiões em que gravou cantores e compositores “populares/popularescos”.

Que difícil deve ser montar um set de show para o artista! Tantas canções fabulosas! Algumas que são ícones de resistência e coragem como, por exemplo, “Alegria, alegria” (pode chamar de “sem lenço, sem documento”); ou símbolo do mais profundo e comovido lirismo como “Coração vagabundo” ou “Cajuína”.

Debaixo dos caracóis dos cabelos do artista, ativista e multitalentoso Caetano Veloso há muitas histórias pra contar de mundos distantes, mas também da trajetória brasileira ao longo do século XX. E nem vale para o seu aniversário a expressão: “Caetano soube envelhecer bem”. Apesar dos muitos cabelos brancos em sua fronte: “o tempo não para e, no entanto, ele nunca envelhece”.

Para mim, Caetano foi, primeiramente, o artista debochado que cantava “eu sou a filha da Chiquita bacana” ou “O leãozinho” em participações no programa de humor d’Os Trapalhões. Depois transitou pelo meu imaginário no cenário do pop-rock nacional com “Eclipse oculto” e “A gata comeu”. Passeou pela pretensamente romântica “Baby” e pela sensual “Você é linda”. Depois, ao ouvir os discos de Bethânia, frequentemente, as canções de que eu gostava era composições de Caetano, como por exemplo “Ela eu eu” ou “Drama”.  Até se consagrar em meu imaginário como sinônimo de talento, erudição e como grande compositor brasileiro. Em parte, a compreensão da dimensão mítica da importância do artista se deu em função das aulas de História e de Literatura na escola pública brasileira. Oportunidade que sistematicamente os governos vêm tentando tirar de meus alunos. Mas que eu não vou deixar. Caetano é uma força de resistência contra a opressão e injustiça através de sua arte, de seu testemunho e de seu discurso.

Entre as minhas preferidas daquelas que Caetano interpreta estão “Fora de ordem”, “Haiti”, “Sampa”, “Podres poderes”, “Mora na filosofia”, “Não enche”. “Terra”, “Língua”, “Objeto não identificado” ... são dezenas de canções e composições lapidares.

E “Força estranha”, “Dom de iludir”, “Reconvexo” e “A dama do cassino” entre as que compôs. Salve Caetano Veloso em seus 80 anos apontando para a expansão do universo. Artista, qual Narciso que aprendeu a admirar o que é imagem e o que é espelho.

Registrei aqui algumas memórias rápidas, alguns flashes de minha relação com o artista e sua obra e minha homenagem pela passagem de seus 80 anos. Evidentemente, quem entende desses parangolés todos não sou eu. Vão ler Roberto Bozzetti, Cícero César, Rafael Julião, Eucanaã Ferraz e mais uma turma de bambas que estudam e entendem profundamente a obra do artista e dos meandros da música popular brasileira e de sua formação para o imaginário cultural brasileiro, além de serem ouvintes sensíveis e atentos da obra do intérprete.

 

 

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