A memória (in)finita
Erivelto Reis
Para Maite Alberdi, Paulina Urrutia e em memória de Augusto
Góngora
Se eu perder a memória, terei perdido o caminho?
Ou o caminho há de se perder em mim?
Se eu perder a memória
Até para os traços mais singelos
Da adoração de meus afetos:
Minha companheira, minha filha, meus filhos,
Meus amigos, meus filmes, minhas músicas e meus álbuns
preferidos...
O que farei com esse resto de estrada?
O que farei com esse resto de caminho?
Se eu perder a memória,
(Fora a arte, o amor e a saudade),
A senha master que destrava
O milagre que eu sou, que eu fui, (que eu pensava ser)
E dá acesso ao mundo subjetivo e inquieto que há em mim,
O que farei com essa procura incógnita
De alguém que já não reconheço o reflexo no espelho?
O que farei com o lusco-fusco do esmaecimento
Que vai caiando de uma luz apenas branca e difusa
O muro de minhas lamentações,
E desmontando o pódio de minhas
Conquistas pessoais?
Que alegrias darei aos que tiverem o carinho
E a misericórdia de cuidar de mim,
De me lembrar de quem sou – talvez não sendo mais,
De quem fui, do que fiz de importante
Aos que compartilham comigo os traços,
Os genes, os memes e o semblante,
Ou aos meus irmãos e irmãs de uma pátria
Em luta, enlutada em permanente levante?
Se eu perder a memória,
Estarei abastecido, protegido pelo amor
Que eu tenha inspirado aos meus companheiros e
companheiras
E aos meus descendentes
Ou que pela humana sensibilidade neles exista
E possa haver triunfado?
Se eu perder a memória no asilo finito da carne de meu
corpo,
Repentino ou gradativo filho eterno do amor de meu amor
E do cuidado e sobressalto de meus filhos,
Antiga fotografia, esquecida entre as páginas
Do mais remoto livro,
Que rasuras farão do meu destino?
Se eu perder a memória,
Se ela me for proibida, inacessível, inescrutável,
Ainda poderei supor
Que algum exemplo que tenha partido de mim permanecerá,
Trêmula bandeira rota do país democrático pelo qual lutei?
Que perguntas morrerão pra sempre no silêncio de mim
mesmo,
Que respostas eu jamais terei?
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