DISCO É CULTURA – OU: PRA FALAR DE SAUDADE
Erivelto Reis
Em
princípio não quis tomar parte nesse tema porque ele vai resgatando coisas da
minha memória que dão pano pra manga e não cabem num long-play. E eu não sou lá
de escrever muito compacto quando o assunto são reminiscências. Mas atendendo à
demanda de Cícero César que categoricamente afirmou: “O
seu caso, você tem que comentar. Curtir é pouco.”. Resolvi ceder. Lá vou eu na
discoteca de meus afetos...
Cheguei
ao Rio de Janeiro lá no finzinho de 1978. (Sempre achei que fosse em 1979, mas depois que minha mãe morreu, localizei em seus documentos, uma carteira de vacinação em meu nome datada de novembro de 1978). Eu tinha dois, quase três anos. Fui
morar com minha família numa vila de casas na Rua Teixeira de Aragão, em Campo
Grande. Chamávamos de ‘Avenida’. Imagina.
A
Rua Teixeira de Aragão era (ainda é) uma rua importante no bairro. Estava
(está) num quarteirão com a sua principal Avenida, próxima ao Supermercado
Sendas, ao Colégio Nossa Senhora do Rosário, à concessionária Guandu Veículos,
ao Viaduto “velho” de Campo Grande, ao Hospital Rocha Faria, à agência da
Light, à Praça Freire Alemão, ao quartel do Corpo de Bombeiros, à Igreja de
Nossa Senhora do Desterro, ao Cemitério de Campo Grande, ao comércio da Rua
Coronel Agostinho, ao antigo DEIC, à antiquíssima garagem da empresa de ônibus
Pégaso e à 35ª Delegacia de Polícia.
Lá
na ‘Avenida’, moraram minha Avó Domira e meu avô Manoel (que posteriormente
iriam morar em Augusto Vasconcelos), minha tia Lúcia, meu tio João e meu primo
Flávio, Dora e Bosco, Dona Dica e seus familiares, Dona Matilde e Dona Lurdes.
Ladeavam a “Avenida” / Vila duas casas grandes. Pelo lado esquerdo de quem
entrava moravam Seu Délio, dona Milta e seus filhos; e pelo lado direito, moravam
Dona Sônia e seu esposo (?) e seu filho Bruno (anos depois tiveram outro filho). Havia na primeira casa, dentro da vila ‘o
povo da frente’, que não conhecíamos, pois havia um sólido portão de ferro sem
grandes que não permitia visão da casa e mesmo deles, que eram aparentados de
Ubiraci e do ‘Rei’. Ah, e claro: na frente da vila, do outro lado da rua,
moravam a notável professora Irene, seu esposo e sua filha Iara. Irene e sua
família eram vizinhos calorosos e afetuosos. Anos depois tive o privilégio de
ser companheiro de trabalho dela. Passagem da qual me orgulho profundamente.
Havia
ainda nessa rua, que fazia esquina com as ruas Pontes Leme (na casa nessa
esquina, moravam as tias do ‘Rei’ e do Ubiraci, grandes amigos de meu pai,
especialmente o “Rei”, que chamava-se Wilson, mas que ninguém sabia chamar por
esse nome), Aratanha, Ilhéus, Dom Silvério e Estrada do Monteiro pessoas como a
professora Margareth, a Fátima e sua mãe, portuguesas que tinham uma padaria na
esquina da estrada do Monteiro com Avenida Cesário de Melo, ao lado da
funerária, e próximo da Igreja de Santo Antônio; a costureira Damares, mãe do
Anderson, um dos meus primeiros amigos, casada com um militar da marinha
conhecido como ‘Marujo’; também moravam nessa rua a Cristina, uma professora e
seus familiares. Havia o seu Abílio da
venda, cujo som do baleiro é inesquecível, e o Bidala, que concertava
bicicletas. Na subida da rua Pontes Leme havia um pequeno clube do Lions, onde
dizem que Roberto Carlos em início de carreira já se apresentara e uma
associação religiosa – não sei ao certo se um convento, ou uma denominação
espírita. Deixei de morar nessa rua em 1982, há quase quarenta anos. Olha por
quais lugares a memória nos vai levando...
Todo
esse preâmbulo para dizer que na “Avenida” / Vila, tive muitas influências
musicais e culturais. Desde os programas de rádio que já mencionei em outra
ocasião, passando pelos discos de Roberto Carlos, Júlio Iglesias, Diana, Carmem
Silva, Perla e Antônio Marcos (predileções de meu pai) e Amado Batista,
Fernando Mendes, José Augusto, Carlos Alexandre e Odair José (dos quais minha
mãe foi fã por toda vida). E os sertanejos raiz, anteriores mesmo à Chitãozinho
e Xororó. Os trios Os filhos de Goiás e Parada Dura, Sérgio Reis, e
principalmente as duplas Léo Canhoto e Robertinho e Milionário e José Rico,
cuja capa de um dos discos trazia reprodução de cédulas de mil cruzeiros, “um
barão” e um encarte só com a imagem de centenas dessas cédulas, que meu pai
emoldurou e colocou na parede de nossa casa simples. E lá ia eu criança,
contando pros moradores da vila que meu pai tinha um quadro na parede cheio de
dinheiro... o que me valeu uma surra daquelas...
Meu
avô Manoel gostava de ouvir Luiz Gonzaga, as vaquejadas, os aboios e os
cantores, violeiros e repentistas nordestinos. Falava “Musga”, tomava café
preto, muito forte, bem quente, pelando, fazendo barulho de sucção na borda do
copo – do tipo de quem suga uma colher de sopa quente – e dizendo: “eita, café
bom!”. Minha mãe ficava orgulhosa de servir café pra ele. E eu achava graça dos
barulhos que ele fazia. Era um avô cheio de onomatopeias. Depois que minha avó
morreu ele ficou indiferente. E assim foi até o fim. Minha avó Domira era religiosa, mas não sei
de que músicas ela gostava. Mas sei que gostava muito de nós, especialmente de
mim. Disso eu me lembro muito bem.
Dona
Dica, era uma senhora negra e magra, de olhos bem vívidos e que estava sempre
com um lenço na cabeça, à moda das lavadeiras. Ouvia pontos de umbanda e
canções de Clara Nunes o tempo todo. Ela perguntava todas as manhãs se eu já
tinha tomado café – nossa casa era a última da “Avenida” / vila – e ela era a
vizinha da penúltima casa, portanto, a mais próxima de nós. Eu dizia que não,
mesmo quando em algumas ocasiões eu já tivesse tomado café. Nós acordávamos
muito cedo porque meu pai saía pra trabalhar de biscate nessa época – capinando
quintal, varrendo, fazendo grama, pintando, podando árvores, limpando caixas
d’água, fossas... qualquer tipo de serviço pesado. Então ela me pedia pra ir à
venda do seu Abílio comprar pão e servia pão com manteiga e café com leite pra
mim todas as manhãs.
Foi
da parede externa da casa dela que eu caí da escada no segundo semestre de
1981. Quando Roberto Carlos lançou ‘Emoções’ e abriu o especial de Natal
daquele ano cantando ‘Ele está pra chegar’, numa véspera de Natal em que meu
pai ainda não havia chegado do trabalho, e eu estava com a clavícula direita
quebrada e com o dorso engessado. Dona Dica gostava do Show do Paulo Lopes,
sobretudo, das histórias da vida que os roteiristas escreviam baseadas em
histórias supostamente reais e supostamente enviadas por ouvintes. Os filhos dela já eram adultos e não tinham
filhos. Fiquei sendo um pouco neto dela também.
A
próxima casa da vila era a de dona Lurdes e dona Matilde. Elas eram religiosas,
bem idosas. Dona Matilde mais simpática e risonha e dona Lurdes mais austera e
séria, de cabelinho curto e bem grisalho. Ela me ensinava como cumprimentar as
pessoas: “diga, meu filho: ‘bom dia, Dona Lurdes, como vai a senhora? e eu vou
responder: bom dia, Erivelto, eu vou muito bem.’”. Dona Matilde também tinha a
cabeça coberta por um lenço de renda, mas os cabelos eram bem branquinhos.
Havia uma tapeçaria logo na parede da entrada: uma cena de caça a patos, bem
aristocrática e em destaque um cachorro perdigueiro a indicar a caça.
Diferentemente
da porta de entrada da casa de Dona Dica, a porta da cada de Dona Matilde e de
Dona Lurdes era dividida em duas partes, de modo que mesmo aberta a parte
superior não era possível ter acesso à casa e elas estavam sempre à porta ou à
pequena janela da frente. Dona Matilde tinha um quarto lotado de bonecas de porcelana
– daquelas que em filme de terror só aumentam o medo – e um pequeno altar com
velas e imagens de santos e entidades.
Dona
Lurdes tinha uma pequena área no fundo da casa de vila onde criava cágados e
cultivava pequenas plantas em vasos. A cozinha da casa era ricamente ornada com
paninhos de crochê e havia um bule de café com um paninho que imitava um galo
ou uma galinha para proteger o bico do bule da entrada de formigas e insetos. Não
ouviam músicas, mas cantavam músicas como as de Dom e Ravel “cantemos juntos...
eu queria ser um pedaço de pão... vejo tantos velhinhos...” e cantos religiosos
católicos. Dona Lurdes frequentava missas na Igreja Nossa Senhora do Desterro,
assim como minha avó Domira (o corpo de minha avó foi velado nessa igreja em
1981). Também fui um pouco neto de Dona Matilde e Dona Lurdes.
A
próxima casa era a de minha tia. Era a casa que tinha televisão. Um portão no
corredor lateral com muitas plantinhas, bem rasteirinhas. Meu avô era quem
cultivava aquele jardim e o das áreas comuns da vila – o que se resumia a um
canteiro bem estreito entre a calçada de acesso às casas da vila e o muro da
casa ao lado desde portão da vila, até próximo ao portão de nossa casa, que era
a última. Ela ouvia Carlos Santos, Wando
e trilhas de novela. Meu tio João trabalhava numa das lojas da rede de
supermercados Disco. Era bem educado e simpático conosco.
Depois
dessa casa, havia a casa da Dora e do Bosco. Eles ouviam Roberto Carlos,
especialmente o disco de 1976 – a canção Você em minha vida e Lindomar Castilho
(Eu vou rifar meu coração, Você é doida demais). Eram primos de meu pai. O
Bosco nos tratava muito bem. Às vezes nos visitava em casa para conversar sobre
trabalhos, futebol, conserto de máquinas e biscates com meu pai. Havia um campo
de futebol – acho que do Atlético Clube Diana – ladeando o cemitério de Campo Grande
e o Bosco e meu pai jogavam lá ou foram assistir futebol lá. Também havia um
campo num grande terreno atrás da concessionária Guandu Veículos. Lembro-me
vagamente de haver algo como uma espécie de arquibancada, onde uma tarde de
domingo meu pai me levou para ver futebol. As ruas começavam a ser decoradas
com o Pacheco e o Naranjito, mascotes da Copa do mundo de futebol que seria na
Espanha em 1982. Nessa época eu comecei a estudar na Escola Municipal George
Washington, que ficava no fim da rua Alvorada logo depois do Regimento de
Polícia Montada de Campo Grande e da rua Pina Rangel.
A
próxima casa era a primeira da “Avenida” (todas as casas situavam-se à esquerda
de quem entrava na vila, à exceção da nossa que ficava de frente para a
entrada, só que ao fundo da vila). Nessa casa em que moravam os parentes do Rei
e do Ubiraci, uma família de pessoas negras, cujo portão estava sempre fechado
fez com que a casa fosse um mistério para mim. Lá eu nunca entrei, nem fui
convidado. Mas eles eram sempre muito alegres e ficavam conversando e ouvindo
música em alto e bom som no portão da vila, que naquela época tinha apenas uma
mureta de pedra e a passagem aberta, como numa galeria. Cada morador que
mantivesse seu portão ou sua porta bem fechada.
Foi ali que ouvi pela primeira vez Benito de
Paula, (meu amigo Charlie Brown), Bebeto (Menina Carolina), Alcione (Não deixe
o samba morrer e Rio Antigo – eu não entendia nada, mas achava o fraseado, o
jeito dela cantar nessa canção bem bonito, diferente), Beth Carvalho (Andança e
Coisinha do Pai), Djavan (Flor de Lis), Fábio e Tim Maia (meu velho camarada),
Claudia Telles (Fim de tarde), Jorge Ben (Jor) (Ive Brussel, que por muito
tempo eu associava com a Carolina do Bebeto, talvez por causa dos arranjos
vocais ou da ideia de uma figura feminina... vai saber!), Agepê (Moro onde não
mora ninguém – eu adorava!) e a mais marcante de todas “Não chore mais”, de
Gilberto Gil.
Claro
que tive a formação musical popularesca/brega/sertaneja/passional dos anos 80,
mas essas memórias, são os primórdios do que viria a construir o meu repertório
afetivo musical e que eu iria buscar reconhecer e compreender ao longo de minha
formação inicial na escola. Ou seja, enquanto eu aprendia o que a escola tinha
pra me ensinar, eu ia tentando encontrar essas referências, (e claro
encontrando milhares de outras) quem eram esses artistas cujas melodias ou
trechos de canções eu ia memorizando nesse período entre 1979 e 1982 em que
morei na “Avenida” / vila.
Disco
é cultura. Vinha escrito na contracapa, lá no pezinho. Depois deram de escrever
nas contracapas dos LPs ‘música é cultura’, ‘estéreo’, disponível também em
cassete. Isso é anterior aos famosos 3 em 1 da década de 80. São memórias do
que em minha casa era um rádio bege, à
pilha pra ouvir os programas nas emissoras AM e uma vitrolinha portátil
vermelha daquelas em que a tampa superior era a caixa de som que, aberta,
permanecia a pouco mais de meio metro, se tanto, da base em que o disco era
posto para tocar em 33 ou 45 rpm. O som era bem ruim, mas era o que nos
conectava à terra de Rio Verde e sua cultura e fazia com que meu pai e minha
mãe se conectassem aos seus afetos e memórias.
Lembro-me
da felicidade de meu pai chegando a casa de bicicleta com o disco Roberto Carlos em Ritmo de Aventura
dentro de uma sacola da Sendas pendurada no guidão da bicicleta, o que se
repetiria com Festival de San Remo 1968 (ele adorava ‘Un gatto nel blu’), Roberto Carlos 1979 (Meu querido, meu
velho meu amigo) e 1980 (A guerra dos meninos) e Erasmo Convida (1980) – meu pai
não era exatamente fã do Erasmo, mas a versão de ‘Sentado à beira do
caminho’ daquele disco pra ele (e pra mim) foi definitiva, emprestando-lhe um
cantarolar, um solfejar que ele repetiu até o fim da vida – (o mesmo de ‘Além
do horizonte’, porém com um sincopado diferente).
Cada
momento relacionado à música é capaz de abrir não apenas a porta de uma
lembrança ou conjunto delas, mas de fazer romper uma represa de água potável,
uma barragem de rejeitos emocionais, uma cachoeira de lágrimas, ou um pouco de
tudo isso, numa antiguidade líquida de que talvez nem Bauman, nem Ricouer ou Heidegger, nem Ecléa Bosi possam dar
conta. Pelo menos do jeito que a gente quer.
No
fim de 1982 viemos morar/trabalhar no sítio. Minha casa era a casa em que a
música era o aboio da lida. A marcação do labor. A casa em que a música era
alta nas manhãs de domingo. Ouvir os discos, comprados novos ou usados na
feira, ou emprestados de amigos ou trazidos por eles para ouvir junto era a
nossa missa. Numa família de pais não religiosos (o que não significa que não
fossem devotamente crentes em Deus), ouvir música era na verdade a catarse
artística capaz de comover a nossa família. E logo que eu aprendi a ler, houve
um incremento. Porque eu lia as capas, o nome dos arranjadores, dos
compositores, dos músicos, a duração das faixas, lia as letras, a ficha técnica
dos discos, os encartes...
Minha
mãe basicamente marcava com esmalte o rótulo do lado em que havia a canção de
que ela mais gostasse. Mas quando eu aprendi a ler, ela me pedia que pusesse
aquela música, daquele disco e eu era o parceiro, o DJ, o companheiro dela
nessa viagem musical.
Quantas
vezes tive o prazer secreto de ver meu pai explicar pra algum conhecido ou
vizinho ou amigo a letra de uma canção que eu li pra ele palavra por palavra e
aí ele dava a interpretação dele, seguida de um “causo” e de uma piada que, em
geral era introduzida pelo bordão “é da moda do outro”, uma espécie de
prenúncio que quer dizer que o insólito pode acometer a qualquer um, mas que
aconteceu com o distraído, o pitoresco, o ‘cabeça fresca’ e como aconteceu a
outrem, seria bom extrair uma lição do ocorrido.
Nossa
família se reunia pra ouvir a rádio América, ou rádio Capital, ou a Tamoyo,
emissoras AM que tocavam música do interior do Brasil. A nossa música. Ou para
assistir o Especial Sertanejo do apresentador Marcelo Costa (“Caba não, mundão!”
era o bordão. Ou algo perto disso...). Uma vez por mês os maiores nomes do
sertanejo raiz: As irmãs Galvão, Tonico e Tinoco, Pena Branca e Xavantinho,
Tião Carreiro e Pardinho, Milionário e José Rico e tantos outros... e as duplas
que estavam começando a fazer sucesso como Chitãozinho e Xororó, Leandro e
Leonardo... E, quando faltava luz, minha mãe e meu pai contavam histórias da
roça. Sem energia elétrica, se tornavam professores de literatura regional.
Nós
nos reuníamos em torno da audição de um disco novo como uma família em torno de
uma ceia de Natal, coisa que, aliás, nunca fizemos – a rigor como se vê nas
famílias tradicionais, desde as de classe média baixa até às mais pobres, passando
pelas religiosas ou pelas que emulam comerciais de TV e cenas de novela. Havia
o sentimento de que se há Natal deve haver certa fartura, ausência de eventual
castigo físico, redução razoável das tarefas do dia a dia de sitiantes, mas
nada disso estava garantido. Era a depender. Se o salário de caseiro fora pago
em dia, se a safra das jabuticabas tivesse sido rentável, se as hortaliças
tivessem sido bem procuradas na porta do mercado, se os leitões cevados
tivessem sido vendidos e pagos, se as encomendas de crochê tivessem ocorrido e
sido entregues e pagas a tempo, se os sacolés de coco, de manga, de abacate e
de banana não tivessem encalhado... se os queijos tivessem boa saída. Se
tivesse aparecido algum gramado pra fazer, alguma árvore pra podar, alguma moto
pra consertar, algum terreno pra capinar... os fatores eram inúmeros. A única
constante talvez fosse a música, os LPs.
Poderia
ser o último disco do Rei, ou os antigos discos sertanejos revisitados. Alguma
novidade antiga da jovem guarda comprada na feira ou alguma pouca variedade de
discos conseguida a custa da compra de
compactos com valor mais em conta com um ou dois sucessos... A essa altura já
com um parelho de som razoável, de segunda mão, comprado na feira (a feira era
o shopping do meu pai) com toca fitas. Mas a predileção eram os LPs. Lembro-me
de meu pai dizendo a alguém: “presta atenção nessa letra”, e eu prestava toda
atenção do mundo. Às vezes entendia; às vezes achava que entendia... às vezes
não entendia nada. Como acontece ainda hoje comigo. O que ficou diferente é que
meu pai não está mais aqui.
Eu
e minha mãe fizemos gradativamente a transição dos LPs para os CDs – dei a ela
todas as coleções de seus artistas preferidos – aos quais se juntariam algum
tempo mais tarde artistas como Daniel e Roberta Miranda – transitamos para as
coletâneas de CD em formato MP3 e por fim, a pedido de meu pai, que escolhia o
repertório que queria nos dispositivos, para os pen-drives com 4, 8, 16, 32
giga de capacidade. Discografias inteiras em apêndices eletrônicos pendurados
num chaveiro. (Era como carregar na chave do carro e ouvir no som da sua Pampa
e, depois da sua Montana – ambas vermelhas, centenas de LPs novos e antigos,
nacionais e internacionais). Depois que minha
mãe morreu, em outubro de 2020, meu irmão me devolveu um verdadeiro baú lotado
desses discos e coleções de CDs. Tudo agora não passa de uma música triste e
sem ritmo. Uma cantiga pesada de saudade e vagar.
Não
fosse o Cícero escrever: “O seu caso, você tem que comentar. Curtir é pouco.”
Talvez esse mundo, essas histórias, essa gente de minha alma permanecesse
apenas na memória e no pensamento, se reinventando, sendo reinventada com mais
ou menos detalhes a depender do dia e da comoção que os acompanhasse.
Proveniente talvez de um cálice de vinho do porto, da viagem de retorno da
filha, da própria incapacidade sistemática de ler um mundo em permanente e
constante descortesia; da leitura de um poema como o que escreveu Yehuda
Halevi, “é uma coisa assustadora amar o que a morte pode tocar” e que só agora
o pude conhecer; de romances como o de Hugo Gonçalves Filho da mãe (2019), ou Minha
mãe se matou sem dizer adeus (2014), de
Evandro Affonso Ferreira ou Torto Arado
(2018), do Itamar Vieira Júnior, que acabei de ler.
A
recordação e comoção podem vir de um cartão de natal antigo com a letra de
Primitivo, de uma ida à casa velha do sítio, da delicadeza profunda que vejo na
forma com que minha mulher trata a mim e aos nossos filhos; de um filme, de uma
música... sempre de uma música...
Não,
não chore mais...
Não,
não chore mais...
É
saudade pra todo lado. E não adianta virar o disco.
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