Quem sou eu

Minha foto
Poeta - escritor - cronista - produtor cultural. Professor de Português e Literaturas. Especialista em Estudos Literários pela FEUC. Especialista em Literaturas Portuguesa e Africanas pela Faculdade de Letras da UFRJ. Mestre e Doutor em Literatura Portuguesa pela UFRJ. Nascido em Goiás, na cidade de Rio Verde. Casado. Pai de três filhos.

terça-feira, 5 de janeiro de 2021

Crônica: "Disco é Cultura - Ou: pra falar de saudade", de Erivelto Reis

 

DISCO É CULTURA – OU: PRA FALAR DE SAUDADE

Erivelto Reis

 

            Em princípio não quis tomar parte nesse tema porque ele vai resgatando coisas da minha memória que dão pano pra manga e não cabem num long-play. E eu não sou lá de escrever muito compacto quando o assunto são reminiscências. Mas atendendo à demanda de Cícero César que categoricamente afirmou: O seu caso, você tem que comentar. Curtir é pouco.”. Resolvi ceder. Lá vou eu na discoteca de meus afetos...

            Cheguei ao Rio de Janeiro lá no finzinho de 1978. (Sempre achei que fosse em 1979, mas depois que minha mãe morreu, localizei em seus documentos, uma carteira de vacinação em meu nome datada de novembro de 1978). Eu tinha dois, quase três anos. Fui morar com minha família numa vila de casas na Rua Teixeira de Aragão, em Campo Grande. Chamávamos de ‘Avenida’. Imagina.

            A Rua Teixeira de Aragão era (ainda é) uma rua importante no bairro. Estava (está) num quarteirão com a sua principal Avenida, próxima ao Supermercado Sendas, ao Colégio Nossa Senhora do Rosário, à concessionária Guandu Veículos, ao Viaduto “velho” de Campo Grande, ao Hospital Rocha Faria, à agência da Light, à Praça Freire Alemão, ao quartel do Corpo de Bombeiros, à Igreja de Nossa Senhora do Desterro, ao Cemitério de Campo Grande, ao comércio da Rua Coronel Agostinho, ao antigo DEIC, à antiquíssima garagem da empresa de ônibus Pégaso e à 35ª Delegacia de Polícia.

            Lá na ‘Avenida’, moraram minha Avó Domira e meu avô Manoel (que posteriormente iriam morar em Augusto Vasconcelos), minha tia Lúcia, meu tio João e meu primo Flávio, Dora e Bosco, Dona Dica e seus familiares, Dona Matilde e Dona Lurdes. Ladeavam a “Avenida” / Vila duas casas grandes. Pelo lado esquerdo de quem entrava moravam Seu Délio, dona Milta e seus filhos; e pelo lado direito, moravam Dona Sônia e seu esposo (?) e seu filho Bruno (anos depois tiveram outro filho).  Havia na primeira casa, dentro da vila ‘o povo da frente’, que não conhecíamos, pois havia um sólido portão de ferro sem grandes que não permitia visão da casa e mesmo deles, que eram aparentados de Ubiraci e do ‘Rei’. Ah, e claro: na frente da vila, do outro lado da rua, moravam a notável professora Irene, seu esposo e sua filha Iara. Irene e sua família eram vizinhos calorosos e afetuosos. Anos depois tive o privilégio de ser companheiro de trabalho dela. Passagem da qual me orgulho profundamente.

            Havia ainda nessa rua, que fazia esquina com as ruas Pontes Leme (na casa nessa esquina, moravam as tias do ‘Rei’ e do Ubiraci, grandes amigos de meu pai, especialmente o “Rei”, que chamava-se Wilson, mas que ninguém sabia chamar por esse nome), Aratanha, Ilhéus, Dom Silvério e Estrada do Monteiro pessoas como a professora Margareth, a Fátima e sua mãe, portuguesas que tinham uma padaria na esquina da estrada do Monteiro com Avenida Cesário de Melo, ao lado da funerária, e próximo da Igreja de Santo Antônio; a costureira Damares, mãe do Anderson, um dos meus primeiros amigos, casada com um militar da marinha conhecido como ‘Marujo’; também moravam nessa rua a Cristina, uma professora e seus familiares.  Havia o seu Abílio da venda, cujo som do baleiro é inesquecível, e o Bidala, que concertava bicicletas. Na subida da rua Pontes Leme havia um pequeno clube do Lions, onde dizem que Roberto Carlos em início de carreira já se apresentara e uma associação religiosa – não sei ao certo se um convento, ou uma denominação espírita. Deixei de morar nessa rua em 1982, há quase quarenta anos. Olha por quais lugares a memória nos vai levando...

            Todo esse preâmbulo para dizer que na “Avenida” / Vila, tive muitas influências musicais e culturais. Desde os programas de rádio que já mencionei em outra ocasião, passando pelos discos de Roberto Carlos, Júlio Iglesias, Diana, Carmem Silva, Perla e Antônio Marcos (predileções de meu pai) e Amado Batista, Fernando Mendes, José Augusto, Carlos Alexandre e Odair José (dos quais minha mãe foi fã por toda vida). E os sertanejos raiz, anteriores mesmo à Chitãozinho e Xororó. Os trios Os filhos de Goiás e Parada Dura, Sérgio Reis, e principalmente as duplas Léo Canhoto e Robertinho e Milionário e José Rico, cuja capa de um dos discos trazia reprodução de cédulas de mil cruzeiros, “um barão” e um encarte só com a imagem de centenas dessas cédulas, que meu pai emoldurou e colocou na parede de nossa casa simples. E lá ia eu criança, contando pros moradores da vila que meu pai tinha um quadro na parede cheio de dinheiro... o que me valeu uma surra daquelas...

            Meu avô Manoel gostava de ouvir Luiz Gonzaga, as vaquejadas, os aboios e os cantores, violeiros e repentistas nordestinos. Falava “Musga”, tomava café preto, muito forte, bem quente, pelando, fazendo barulho de sucção na borda do copo – do tipo de quem suga uma colher de sopa quente – e dizendo: “eita, café bom!”. Minha mãe ficava orgulhosa de servir café pra ele. E eu achava graça dos barulhos que ele fazia. Era um avô cheio de onomatopeias. Depois que minha avó morreu ele ficou indiferente. E assim foi até o fim.  Minha avó Domira era religiosa, mas não sei de que músicas ela gostava. Mas sei que gostava muito de nós, especialmente de mim. Disso eu me lembro muito bem.

            Dona Dica, era uma senhora negra e magra, de olhos bem vívidos e que estava sempre com um lenço na cabeça, à moda das lavadeiras. Ouvia pontos de umbanda e canções de Clara Nunes o tempo todo. Ela perguntava todas as manhãs se eu já tinha tomado café – nossa casa era a última da “Avenida” / vila – e ela era a vizinha da penúltima casa, portanto, a mais próxima de nós. Eu dizia que não, mesmo quando em algumas ocasiões eu já tivesse tomado café. Nós acordávamos muito cedo porque meu pai saía pra trabalhar de biscate nessa época – capinando quintal, varrendo, fazendo grama, pintando, podando árvores, limpando caixas d’água, fossas... qualquer tipo de serviço pesado. Então ela me pedia pra ir à venda do seu Abílio comprar pão e servia pão com manteiga e café com leite pra mim todas as manhãs.

            Foi da parede externa da casa dela que eu caí da escada no segundo semestre de 1981. Quando Roberto Carlos lançou ‘Emoções’ e abriu o especial de Natal daquele ano cantando ‘Ele está pra chegar’, numa véspera de Natal em que meu pai ainda não havia chegado do trabalho, e eu estava com a clavícula direita quebrada e com o dorso engessado. Dona Dica gostava do Show do Paulo Lopes, sobretudo, das histórias da vida que os roteiristas escreviam baseadas em histórias supostamente reais e supostamente enviadas por ouvintes.  Os filhos dela já eram adultos e não tinham filhos. Fiquei sendo um pouco neto dela também.

            A próxima casa da vila era a de dona Lurdes e dona Matilde. Elas eram religiosas, bem idosas. Dona Matilde mais simpática e risonha e dona Lurdes mais austera e séria, de cabelinho curto e bem grisalho. Ela me ensinava como cumprimentar as pessoas: “diga, meu filho: ‘bom dia, Dona Lurdes, como vai a senhora? e eu vou responder: bom dia, Erivelto, eu vou muito bem.’”. Dona Matilde também tinha a cabeça coberta por um lenço de renda, mas os cabelos eram bem branquinhos. Havia uma tapeçaria logo na parede da entrada: uma cena de caça a patos, bem aristocrática e em destaque um cachorro perdigueiro a indicar a caça.

            Diferentemente da porta de entrada da casa de Dona Dica, a porta da cada de Dona Matilde e de Dona Lurdes era dividida em duas partes, de modo que mesmo aberta a parte superior não era possível ter acesso à casa e elas estavam sempre à porta ou à pequena janela da frente. Dona Matilde tinha um quarto lotado de bonecas de porcelana – daquelas que em filme de terror só aumentam o medo – e um pequeno altar com velas e imagens de santos e entidades.

            Dona Lurdes tinha uma pequena área no fundo da casa de vila onde criava cágados e cultivava pequenas plantas em vasos. A cozinha da casa era ricamente ornada com paninhos de crochê e havia um bule de café com um paninho que imitava um galo ou uma galinha para proteger o bico do bule da entrada de formigas e insetos. Não ouviam músicas, mas cantavam músicas como as de Dom e Ravel “cantemos juntos... eu queria ser um pedaço de pão... vejo tantos velhinhos...” e cantos religiosos católicos. Dona Lurdes frequentava missas na Igreja Nossa Senhora do Desterro, assim como minha avó Domira (o corpo de minha avó foi velado nessa igreja em 1981). Também fui um pouco neto de Dona Matilde e Dona Lurdes.

            A próxima casa era a de minha tia. Era a casa que tinha televisão. Um portão no corredor lateral com muitas plantinhas, bem rasteirinhas. Meu avô era quem cultivava aquele jardim e o das áreas comuns da vila – o que se resumia a um canteiro bem estreito entre a calçada de acesso às casas da vila e o muro da casa ao lado desde portão da vila, até próximo ao portão de nossa casa, que era a última.  Ela ouvia Carlos Santos, Wando e trilhas de novela. Meu tio João trabalhava numa das lojas da rede de supermercados Disco. Era bem educado e simpático conosco.    

            Depois dessa casa, havia a casa da Dora e do Bosco. Eles ouviam Roberto Carlos, especialmente o disco de 1976 – a canção Você em minha vida e Lindomar Castilho (Eu vou rifar meu coração, Você é doida demais). Eram primos de meu pai. O Bosco nos tratava muito bem. Às vezes nos visitava em casa para conversar sobre trabalhos, futebol, conserto de máquinas e biscates com meu pai. Havia um campo de futebol – acho que do Atlético Clube Diana – ladeando o cemitério de Campo Grande e o Bosco e meu pai jogavam lá ou foram assistir futebol lá. Também havia um campo num grande terreno atrás da concessionária Guandu Veículos. Lembro-me vagamente de haver algo como uma espécie de arquibancada, onde uma tarde de domingo meu pai me levou para ver futebol. As ruas começavam a ser decoradas com o Pacheco e o Naranjito, mascotes da Copa do mundo de futebol que seria na Espanha em 1982. Nessa época eu comecei a estudar na Escola Municipal George Washington, que ficava no fim da rua Alvorada logo depois do Regimento de Polícia Montada de Campo Grande e da rua Pina Rangel.

            A próxima casa era a primeira da “Avenida” (todas as casas situavam-se à esquerda de quem entrava na vila, à exceção da nossa que ficava de frente para a entrada, só que ao fundo da vila). Nessa casa em que moravam os parentes do Rei e do Ubiraci, uma família de pessoas negras, cujo portão estava sempre fechado fez com que a casa fosse um mistério para mim. Lá eu nunca entrei, nem fui convidado. Mas eles eram sempre muito alegres e ficavam conversando e ouvindo música em alto e bom som no portão da vila, que naquela época tinha apenas uma mureta de pedra e a passagem aberta, como numa galeria. Cada morador que mantivesse seu portão ou sua porta bem fechada.

             Foi ali que ouvi pela primeira vez Benito de Paula, (meu amigo Charlie Brown), Bebeto (Menina Carolina), Alcione (Não deixe o samba morrer e Rio Antigo – eu não entendia nada, mas achava o fraseado, o jeito dela cantar nessa canção bem bonito, diferente), Beth Carvalho (Andança e Coisinha do Pai), Djavan (Flor de Lis), Fábio e Tim Maia (meu velho camarada), Claudia Telles (Fim de tarde), Jorge Ben (Jor) (Ive Brussel, que por muito tempo eu associava com a Carolina do Bebeto, talvez por causa dos arranjos vocais ou da ideia de uma figura feminina... vai saber!), Agepê (Moro onde não mora ninguém – eu adorava!) e a mais marcante de todas “Não chore mais”, de Gilberto Gil.

            Claro que tive a formação musical popularesca/brega/sertaneja/passional dos anos 80, mas essas memórias, são os primórdios do que viria a construir o meu repertório afetivo musical e que eu iria buscar  reconhecer e compreender ao longo de minha formação inicial na escola. Ou seja, enquanto eu aprendia o que a escola tinha pra me ensinar, eu ia tentando encontrar essas referências, (e claro encontrando milhares de outras) quem eram esses artistas cujas melodias ou trechos de canções eu ia memorizando nesse período entre 1979 e 1982 em que morei na “Avenida” / vila.

            Disco é cultura. Vinha escrito na contracapa, lá no pezinho. Depois deram de escrever nas contracapas dos LPs ‘música é cultura’, ‘estéreo’, disponível também em cassete. Isso é anterior aos famosos 3 em 1 da década de 80. São memórias do que em  minha casa era um rádio bege, à pilha pra ouvir os programas nas emissoras AM e uma vitrolinha portátil vermelha daquelas em que a tampa superior era a caixa de som que, aberta, permanecia a pouco mais de meio metro, se tanto, da base em que o disco era posto para tocar em 33 ou 45 rpm. O som era bem ruim, mas era o que nos conectava à terra de Rio Verde e sua cultura e fazia com que meu pai e minha mãe se conectassem aos seus afetos e memórias.

            Lembro-me da felicidade de meu pai chegando a casa de bicicleta com o disco Roberto Carlos em Ritmo de Aventura dentro de uma sacola da Sendas pendurada no guidão da bicicleta, o que se repetiria com Festival de San Remo 1968 (ele adorava ‘Un gatto nel blu’), Roberto Carlos 1979 (Meu querido, meu velho meu amigo) e 1980  (A guerra dos meninos) e Erasmo Convida (1980) – meu pai  não era exatamente fã do Erasmo, mas a versão de ‘Sentado à beira do caminho’ daquele disco pra ele (e pra mim) foi definitiva, emprestando-lhe um cantarolar, um solfejar que ele repetiu até o fim da vida – (o mesmo de ‘Além do horizonte’, porém com um sincopado diferente).

            Cada momento relacionado à música é capaz de abrir não apenas a porta de uma lembrança ou conjunto delas, mas de fazer romper uma represa de água potável, uma barragem de rejeitos emocionais, uma cachoeira de lágrimas, ou um pouco de tudo isso, numa antiguidade líquida de que talvez nem Bauman, nem Ricouer ou Heidegger, nem Ecléa Bosi possam dar conta. Pelo menos do jeito que a gente quer.

            No fim de 1982 viemos morar/trabalhar no sítio. Minha casa era a casa em que a música era o aboio da lida. A marcação do labor. A casa em que a música era alta nas manhãs de domingo. Ouvir os discos, comprados novos ou usados na feira, ou emprestados de amigos ou trazidos por eles para ouvir junto era a nossa missa. Numa família de pais não religiosos (o que não significa que não fossem devotamente crentes em Deus), ouvir música era na verdade a catarse artística capaz de comover a nossa família. E logo que eu aprendi a ler, houve um incremento. Porque eu lia as capas, o nome dos arranjadores, dos compositores, dos músicos, a duração das faixas, lia as letras, a ficha técnica dos discos, os encartes...

            Minha mãe basicamente marcava com esmalte o rótulo do lado em que havia a canção de que ela mais gostasse. Mas quando eu aprendi a ler, ela me pedia que pusesse aquela música, daquele disco e eu era o parceiro, o DJ, o companheiro dela nessa viagem musical.

            Quantas vezes tive o prazer secreto de ver meu pai explicar pra algum conhecido ou vizinho ou amigo a letra de uma canção que eu li pra ele palavra por palavra e aí ele dava a interpretação dele, seguida de um “causo” e de uma piada que, em geral era introduzida pelo bordão “é da moda do outro”, uma espécie de prenúncio que quer dizer que o insólito pode acometer a qualquer um, mas que aconteceu com o distraído, o pitoresco, o ‘cabeça fresca’ e como aconteceu a outrem, seria bom extrair uma lição do ocorrido.

            Nossa família se reunia pra ouvir a rádio América, ou rádio Capital, ou a Tamoyo, emissoras AM que tocavam música do interior do Brasil. A nossa música. Ou para assistir o Especial Sertanejo do apresentador Marcelo Costa (“Caba não, mundão!” era o bordão. Ou algo perto disso...). Uma vez por mês os maiores nomes do sertanejo raiz: As irmãs Galvão, Tonico e Tinoco, Pena Branca e Xavantinho, Tião Carreiro e Pardinho, Milionário e José Rico e tantos outros... e as duplas que estavam começando a fazer sucesso como Chitãozinho e Xororó, Leandro e Leonardo... E, quando faltava luz, minha mãe e meu pai contavam histórias da roça. Sem energia elétrica, se tornavam professores de literatura regional.

            Nós nos reuníamos em torno da audição de um disco novo como uma família em torno de uma ceia de Natal, coisa que, aliás, nunca fizemos – a rigor como se vê nas famílias tradicionais, desde as de classe média baixa até às mais pobres, passando pelas religiosas ou pelas que emulam comerciais de TV e cenas de novela. Havia o sentimento de que se há Natal deve haver certa fartura, ausência de eventual castigo físico, redução razoável das tarefas do dia a dia de sitiantes, mas nada disso estava garantido. Era a depender. Se o salário de caseiro fora pago em dia, se a safra das jabuticabas tivesse sido rentável, se as hortaliças tivessem sido bem procuradas na porta do mercado, se os leitões cevados tivessem sido vendidos e pagos, se as encomendas de crochê tivessem ocorrido e sido entregues e pagas a tempo, se os sacolés de coco, de manga, de abacate e de banana não tivessem encalhado... se os queijos tivessem boa saída. Se tivesse aparecido algum gramado pra fazer, alguma árvore pra podar, alguma moto pra consertar, algum terreno pra capinar... os fatores eram inúmeros. A única constante talvez fosse a música, os LPs.

            Poderia ser o último disco do Rei, ou os antigos discos sertanejos revisitados. Alguma novidade antiga da jovem guarda comprada na feira ou alguma pouca variedade de discos  conseguida a custa da compra de compactos com valor mais em conta com um ou dois sucessos... A essa altura já com um parelho de som razoável, de segunda mão, comprado na feira (a feira era o shopping do meu pai) com toca fitas. Mas a predileção eram os LPs. Lembro-me de meu pai dizendo a alguém: “presta atenção nessa letra”, e eu prestava toda atenção do mundo. Às vezes entendia; às vezes achava que entendia... às vezes não entendia nada. Como acontece ainda hoje comigo. O que ficou diferente é que meu pai não está mais aqui.

            Eu e minha mãe fizemos gradativamente a transição dos LPs para os CDs – dei a ela todas as coleções de seus artistas preferidos – aos quais se juntariam algum tempo mais tarde artistas como Daniel e Roberta Miranda – transitamos para as coletâneas de CD em formato MP3 e por fim, a pedido de meu pai, que escolhia o repertório que queria nos dispositivos, para os pen-drives com 4, 8, 16, 32 giga de capacidade. Discografias inteiras em apêndices eletrônicos pendurados num chaveiro. (Era como carregar na chave do carro e ouvir no som da sua Pampa e, depois da sua Montana – ambas vermelhas, centenas de LPs novos e antigos, nacionais e internacionais).  Depois que minha mãe morreu, em outubro de 2020, meu irmão me devolveu um verdadeiro baú lotado desses discos e coleções de CDs. Tudo agora não passa de uma música triste e sem ritmo. Uma cantiga pesada de saudade e vagar.

            Não fosse o Cícero escrever: “O seu caso, você tem que comentar. Curtir é pouco.” Talvez esse mundo, essas histórias, essa gente de minha alma permanecesse apenas na memória e no pensamento, se reinventando, sendo reinventada com mais ou menos detalhes a depender do dia e da comoção que os acompanhasse. Proveniente talvez de um cálice de vinho do porto, da viagem de retorno da filha, da própria incapacidade sistemática de ler um mundo em permanente e constante descortesia; da leitura de um poema como o que escreveu Yehuda Halevi, “é uma coisa assustadora amar o que a morte pode tocar” e que só agora o pude conhecer; de romances como o de Hugo Gonçalves Filho da mãe (2019), ou Minha mãe se matou sem dizer adeus (2014), de Evandro Affonso Ferreira ou Torto Arado (2018), do Itamar Vieira Júnior, que acabei de ler.

            A recordação e comoção podem vir de um cartão de natal antigo com a letra de Primitivo, de uma ida à casa velha do sítio, da delicadeza profunda que vejo na forma com que minha mulher trata a mim e aos nossos filhos; de um filme, de uma música... sempre de uma música...

            Não, não chore mais...

            Não, não chore mais...

            É saudade pra todo lado. E não adianta virar o disco.

             

 

           

           

           

Nenhum comentário:

Postar um comentário