BREVE CONSIDERAÇÃO
SOBRE GILBERTO GIL
EM SEU ANIVERSÁRIO
Erivelto Reis
Eu era muito garoto, cinco ou seis
anos, no máximo, na primeira vez que ouvi a versão criada por Gilberto Gil “Não
chore mais”, para a canção “No Woman, no
Cry”, de Bob Marley, mas senti que aquela canção tinha um sentido diferente
das que eu costumava ouvir em casa. Gilberto Gil não existia ainda no universo
de meu imaginário. No entanto, aquela canção passou a me acompanhar desde
então.
Depois, a inesquecível e super
popular canção “Sítio do Pica-pau amarelo”, abertura de um antigo programa de
TV e, a partir daí, canções como “Super-homem”, “Se eu quiser falar com Deus”, “Realce”,
“Palco” e “Domingo no parque” iriam somar-se ao deleite de então saber o nome
do artista e ao prazer pela voz que eu conhecia, mas de um intérprete ainda sem
rosto para a infância das minhas predileções musicais e das minhas
compreensões. Eu não tinha ainda
ideia do que era um compositor. Não sabia que coisas belas como aquelas
poderiam ser escritas pela mão de um único e talentoso indivíduo. A ideia de
composição para mim era abstrata e longínqua. Talvez imaginasse a composição
como uma força da natureza, um evento circunstancial como um raio, um trovão ou
um pensamento desenvolvido através dos tempos e que se materializasse
repentinamente aos olhos de um indivíduo que tivesse a agilidade e a sagacidade
de anotar o pensamento antes que ele se perdesse. Aprendi a poesia da música
antes de conhecer a música dos versos e dos poetas.
A primeira vez que vi e ouvi
Gilberto Gil foi em “Vamos fugir” e achava o máximo que se pudesse escrever ‘carregue’,
‘regue’, ‘escorregue’ e rimar com ‘regaae’ ou como em “A novidade”, rimar ‘máximo’
e ‘paradoxo’ como jogo de palavras e significados numa canção para discutir um
mundo tão desigual. Nunca mais o abandonei em meu coração de fã.
Na escola, com as professoras Suely
Moura e Maria Teresa e com o professor Edson, conheci Djavan, Chico Buarque,
Caetano Veloso, Cazuza, Raul Seixas, Titãs, Legião Urbana... (Gal Costa eu
conheceria através de “Festa do Interior”; Zizi Possi, de “Asa morena”, que
ouvi no Rádio AM; Rita Lee, através de “Minha fama de mau”, gravada com Erasmo
Carlos e Maria Bethânia, através da canção “Amiga” que Bethânia gravara com
Roberto Carlos). E quando chegou o momento de estudar uma letra de Gilberto
Gil, justamente “Vamos fugir”, (alguns colegas disseram: “vamos fugir da
escola!” E não é que alguns fugiram mesmo...) eu já sabia que estava diante de
um Deus da canção popular do Brasil.
Depois, nas aulas de História,
aprendi sobre a importância política de Caetano, Gilberto Gil e outros dessa
geração. (Outro dia me peguei completamente emocionado diante da coragem e da
beleza de interpretação e de composição do álbum de 1973 de Ivan Lins). Sem
falar na aula que assisti na faculdade, convidado por meu amigo e colega
professor Cícero César sobre o documentário Uma
noite em 67, no qual Gil aparece com enorme destaque. Voltando ao passado
ainda mais remoto: naquela ocasião, uma das professoras, animada por eu
conhecer algumas canções de Gil, se desdobrou em fazer uma análise de “Domingo
no parque” em sala de aula com direito a aparelho portátil de toca-fitas e
tudo. E foi como se uma peça teatral emergisse daquela letra e as personagens
João, José e Juliana ganhassem vida.
Devo muito, como brasileiro e como
fã, a tudo o que Gilberto Gil representa em nossas artes, nossa música e em nossa
cultura. Ele pra mim foi o mais doce dos Doces Bárbaros. Tem uma das
composições de que mais gosto, “Alteza”, interpretada por Maria Bethânia e cuja
participação em canções como “Purificar o Subaé” e “Foram me chamar” com
Caetano e Bethânia estão entre as minhas canções preferidas. Há ainda “Mar de
Copacabana”, “Drão”, “Amarra o teu arado a uma estrela”, “Parabolicamará”, “Estrela”,
“Expresso 222”, “Sandra”... Os álbuns Quantá
e Kaya na Gandaya e o antológico Tropicália 2 que são marcos especialíssimos
para mim como público do artista.
Tem um valor simbólico muito grande para
mim o fato de que o país já o teve como Ministro da Cultura. Eu torci por ele e
gostei da representatividade histórica de que um artista que foi ministro da
cultura do meu país cantou e se apresentou até nas Nações Unidas e é
reconhecido no mundo todo. Para minha autoestima de brasileiro foi o mesmo que
senti quando a seleção brasileira de vôlei ganhou ouro nas Olimpíadas de
Barcelona em 1992 ou quando a seleção brasileira de futebol ganhou a Copa do
mundo em 1994. Gilberto Gil, sozinho, equipara-se a todas as nossas melhores
seleções, aos nossos melhores atletas, aos brasileiros e brasileiras mais
importantes em seus segmentos e ainda assim, equipara-se aos brasileiros e
brasileiras mais simples e humildes e de bom coração. Ele é o melhor que nós
temos.
Tempos depois, voltaria ainda a me
reencontrar com a canção de Gilberto Gil pelo viés do olhar de um grande poeta,
Primitivo Paes, que entre suas canções preferidas tinha “Lamento sertanejo” e “Não
chore mais”. Sei que canções como “Andar com fé” e “Esperando na janela” estão
entre as mais populares do artista. E algumas vezes descobri que canções de que
gostava muito como “Procissão”, que conheci na interpretação de Sérgio Reis,
era uma composição de Gil. Penso que Gilberto Gil compõe um tipo de canção que
ou Deus escuta ou ajuda a compor.
Gosto de saber que ele não se
corrompeu pela vaidade, que ajudou muitos artistas, que é querido pelos de seu
meio, que é artista e intelectual em seu labor. Gosto de sua musicalidade, de
sua sonoridade, do equilíbrio e da energia de seus versos, de sua poesia, de
seu falsete, de sabê-lo leitor, de vê-lo argumentar e contar histórias, aberto
a outras expressões de arte, capaz de ponderar, de ensinar e de aprender.
Mais recentemente assisti seu
magnífico show Concerto de Cordas e
Máquinas de Ritmo, especialmente à sua interpretação para “Não tenho medo
da morte” que é algo em que se pensar para sempre, para ficar gravado na alma.
Gosto de saber que existem os Gilsons (filhos de Gil), a Preta e a Bela Gil, de
testemunhar a beleza de liberdade com que Gil e suas companheiras os apoiaram como
pais e de saber do carinho de seus descendentes por ele. Gosto de saber que ele
escreveu “Cálice” com Chico Buarque, que tocou violão na cela da prisão e que,
mesmo com medo, teve ainda mais coragem para resistir e revidar com a arte à
violência e à opressão. Gosto de lembrar-me dele sem qualquer expressão de
censura ou preconceito contra quem quer que seja. Gosto de saber que Gil ama o
Brasil sem querer possuí-lo ou entender que lhe devam algo. Que ele ama e
sempre amou democrática e despretensiosamente a esta terra e a este povo. Que,
antes, usou sua arte como arauto de um tempo de compreensão e respeito por
todos e todas. Gosto de pensar nele tão perto de mim, moldando a sensibilidade
de meu gosto, de minha ética. Que segue firme escrevendo, cantando aquilo que
generosamente me oferece (oferece a todos e todas) com o poder único de seu
talento.
Gilberto Gil é um dos grandes nomes
desse país. Poeta, militante corajoso, cantor e compositor genial e de
personalidade ímpar na constelação de nossas estrelas, no repertório de nossos
sons e de nossas letras. É um homem de nosso tempo, à frente e depois de
qualquer tempo que vier. Ele merece de cada brasileiro/a um imenso e carinhoso
abraço. Gilberto Gil sempre esteve e continua lindo.
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