EMICIDA EM AMARELO AO VIVO: AYEYE,
AJODUM
DE NOSSA GENTE E DE TODOS OS ORIXÁS
Erivelto Reis
Já havia escrito sobre o disco AmarElo
(2019/2020) do cantor e compositor Emicida. Muito mais um registro de meu
assombro diante daquele que seguramente estará entre os grandes discos
brasileiros de todos os tempos, do que qualquer pretensão de análise ou
crítica. E talvez o embevecimento tenha se estendido ainda à primeira vez que
assisti ao show Amarelo ao vivo, realizado no Teatro Municipal de São Paulo.
Lembro-me
de ter comentado como me parecia simbólico que aquele show, estruturado
basicamente com as principais canções da carreira de Emicida e especialmente
daquele álbum/projeto AmarElo fosse
realizado no Teatro Municipal de São Paulo. Eu escrevo e falo “disco” por pura
convenção cultural, principalmente diante da imaterialidade que o streaming
confere à forma como lidamos com a prática de consumir música.
Volto
ao show mais uma vez, talvez motivado por uma sequência de documentários, lives
ou matérias sobre grandes nomes de nossa canção como Caetano Veloso, Gilberto
Gil, Maria Bethânia, Rita Lee, Erasmo Carlos, Paulinho da Viola, Chico Buarque,
Tom Zé, Raul Seixas, Martinho da Vila e mesmo pelos 80 anos do Rei Roberto
Carlos.
Francamente,
pareceu-me que o show ganha novos aspectos para além de sua simbologia de
evento artístico de um grande nome da cena contemporânea nacional. Reassistir a
esse evento provocou em mim a idealização de como seria fundamental para nossa
sociedade e para nossa cultura que, em alguma das noites de fevereiro de 2022,
o show AmarElo retornasse ao palco do Municipal de São Paulo para simbolizar o
reposicionamento de aspectos centrais de nossa modernidade e talvez cumprir
finalmente parte do intento da primeira Semana. Assim, teríamos novos valores
reafirmados, todos construídos pela reverência à história, à arte, à cultura
brasileira em face do empoderamento e da quebra de paradigmas de arte
consolidados pelo branqueamento e o eurocentrismo que sempre estigmatizaram e
moldaram – desde os livros didáticos – as versões de nossa trajetória enquanto
nação, os nossos cânones (vide Lima Barreto e os conflitos pelos quais passou e
o próprio Machado de Assis), o imaginário cultural e artístico de nossa
sociedade através da indústria da cultura de massa.
Imaginem:
fevereiro de 22 no Municipal de São Paulo, Emicida em AmarElo, Conceição Evaristo lendo um dos seu textos,
Carolina Maria de Jesus e seus escritos em exposição no Municipal e no Museu da
Língua Portuguesa. Por toda a cidade fotos de Sebastião Salgado, um sarau de
poesia, hip-hop, slam, grafite, e todas as manifestações de arte em que
definitivamente a ancestralidade e as matrizes étnicas brasileiras tivessem
espaço de valorização e reconhecimento num manifesto lido por Djamila Ribeiro e
Ailton Krenak. Um painel gigante de Eduardo Kobra apresentaria a nova marca do
centenário da Semana de 22...
Voltando
ao show AmarElo, do Emicida, revendo-o entendo sua dimensão ritual. Trata-se de
uma cerimônia de comemoração e celebração – ayeye,
ajodum de todos os orixás – para todos os credos e todos os corações. É uma
consagração da força da palavra, uma reza, um ponto, um cântico, uma prece do
coração das Áfricas que desconhecemos e daqueles que pra cá foram trazidos e
construíram nosso país e nossa cidadania e nossa civilização para tocar e
comover o coração de todos os brasileiros.
Evidentemente,
há em AmarElo um grito, uma explosão de denúncia, de raiva e revolta contra a
violência, o preconceito de qualquer natureza, a dor, e cada canção é um
convite a que todas as pessoas reflitam sobre que valores consagram e por quais
se pautam. AmarElo é uma demonstração de talento, força, criatividade,
profissionalismo, apuro estético em cada detalhe. Cada parte do show destaca a
inclusão (há um intérprete de libras no show e um telão na porta do Teatro
Municipal transmite o show para quem não conseguiu ou não pôde pagar pelo
ingresso), o empoderamento da mulher,
dos mais pobres, da periferia, dos que estão ou estiveram à margem. Revela
apuro, estilo, criação artística inédita e reverência aos ídolos e companheiros
de jornada.
Como
uma celebração dos/aos orixás, reconta a história, apresenta testemunhos,
louva, menciona, revisita nomes e entidades fundamentais para a cultura e a
história negra em nosso país, fala de amor, de esperança, reverencia a
ancestralidade. Cada canção funciona como um salmo, um versículo, um ponto. É
um show sincrético, porque não despreza nossa formação religiosa ou cultural. Não
ignora a miscigenação de nosso povo, nem o que ela significa em termos de
sofrimento e violência aos povos escravizados e aos povos originários e na agressão
e crueldade sofridas nos tempos que seguem, infelizmente. Porém, reafirma um novo evangelho antigo de
respeito à história, à cultura e a todas as pessoas negras e nos recorda de valores
que não podem ser esquecidos nem por um momento. Valores inegociáveis para com
a dignidade humana.
Como
realização estética e artística, tudo é simbólico, provocativo, polissêmico. Emicida
faz história ao celebrar e comemorar os orixás, a negritude, a luta do povo e seu
talento, sua força como artista destaca o valor de seu público e a relação com
elementos fundamentais de nossa cultura.
O
Teatro Municipal de São Paulo e o seu entorno tornam-se espaços para um evento
histórico que religa nossa história com o sagrado das raízes de nossa
brasilidade e me parece uma imagem algo poética cabível ao centenário da Semana
de Arte Moderna e compatível com o reposicionamento e o empoderamento de nossa
gente, de nossos reais valores antropológicos, artísticos e sociais, alma de
nossa cultura. Além disso, as letras e a música de Emicida são sensacionais. O
show se concretiza, portanto, em âmbito estético, artístico, político, social e
histórico.
Agradeço
à Elba Gaya e à Paulinha Machado que me leram antes e me ajudaram a encontrar
as palavras que me faltaram e de que, sem querer, me perdi.
Expresso
meu desejo de que haja Liberdade e Respeito para o povo todo.
Que lindo, professor. 👏🏿
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