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Poeta - escritor - cronista - produtor cultural. Professor de Português e Literaturas. Especialista em Estudos Literários pela FEUC. Especialista em Literaturas Portuguesa e Africanas pela Faculdade de Letras da UFRJ. Mestre e Doutor em Literatura Portuguesa pela UFRJ. Nascido em Goiás, na cidade de Rio Verde. Casado. Pai de três filhos.

domingo, 29 de agosto de 2021

Crônica: "EMICIDA EM AMARELO AO VIVO: AYEYE, AJODUM DE NOSSA GENTE E DE TODOS OS ORIXÁS" , de Erivelto Reis

 

EMICIDA EM AMARELO AO VIVO: AYEYE, AJODUM

DE NOSSA GENTE E DE TODOS OS ORIXÁS

Erivelto Reis



            Já havia escrito sobre o disco AmarElo (2019/2020) do cantor e compositor Emicida. Muito mais um registro de meu assombro diante daquele que seguramente estará entre os grandes discos brasileiros de todos os tempos, do que qualquer pretensão de análise ou crítica. E talvez o embevecimento tenha se estendido ainda à primeira vez que assisti ao show Amarelo ao vivo, realizado no Teatro Municipal de São Paulo.

            Lembro-me de ter comentado como me parecia simbólico que aquele show, estruturado basicamente com as principais canções da carreira de Emicida e especialmente daquele álbum/projeto AmarElo fosse realizado no Teatro Municipal de São Paulo. Eu escrevo e falo “disco” por pura convenção cultural, principalmente diante da imaterialidade que o streaming confere à forma como lidamos com a prática de consumir música.

            Volto ao show mais uma vez, talvez motivado por uma sequência de documentários, lives ou matérias sobre grandes nomes de nossa canção como Caetano Veloso, Gilberto Gil, Maria Bethânia, Rita Lee, Erasmo Carlos, Paulinho da Viola, Chico Buarque, Tom Zé, Raul Seixas, Martinho da Vila e mesmo pelos 80 anos do Rei Roberto Carlos.

            Francamente, pareceu-me que o show ganha novos aspectos para além de sua simbologia de evento artístico de um grande nome da cena contemporânea nacional. Reassistir a esse evento provocou em mim a idealização de como seria fundamental para nossa sociedade e para nossa cultura que, em alguma das noites de fevereiro de 2022, o show AmarElo retornasse ao palco do Municipal de São Paulo para simbolizar o reposicionamento de aspectos centrais de nossa modernidade e talvez cumprir finalmente parte do intento da primeira Semana. Assim, teríamos novos valores reafirmados, todos construídos pela reverência à história, à arte, à cultura brasileira em face do empoderamento e da quebra de paradigmas de arte consolidados pelo branqueamento e o eurocentrismo que sempre estigmatizaram e moldaram – desde os livros didáticos – as versões de nossa trajetória enquanto nação, os nossos cânones (vide Lima Barreto e os conflitos pelos quais passou e o próprio Machado de Assis), o imaginário cultural e artístico de nossa sociedade através da indústria da cultura de massa.

            Imaginem: fevereiro de 22 no Municipal de São Paulo, Emicida em AmarElo,  Conceição Evaristo lendo um dos seu textos, Carolina Maria de Jesus e seus escritos em exposição no Municipal e no Museu da Língua Portuguesa. Por toda a cidade fotos de Sebastião Salgado, um sarau de poesia, hip-hop, slam, grafite, e todas as manifestações de arte em que definitivamente a ancestralidade e as matrizes étnicas brasileiras tivessem espaço de valorização e reconhecimento num manifesto lido por Djamila Ribeiro e Ailton Krenak. Um painel gigante de Eduardo Kobra apresentaria a nova marca do centenário da Semana de 22...

            Voltando ao show AmarElo, do Emicida, revendo-o entendo sua dimensão ritual. Trata-se de uma cerimônia de comemoração e celebração – ayeye, ajodum de todos os orixás – para todos os credos e todos os corações. É uma consagração da força da palavra, uma reza, um ponto, um cântico, uma prece do coração das Áfricas que desconhecemos e daqueles que pra cá foram trazidos e construíram nosso país e nossa cidadania e nossa civilização para tocar e comover o coração de todos os brasileiros.

            Evidentemente, há em AmarElo um grito, uma explosão de denúncia, de raiva e revolta contra a violência, o preconceito de qualquer natureza, a dor, e cada canção é um convite a que todas as pessoas reflitam sobre que valores consagram e por quais se pautam. AmarElo é uma demonstração de talento, força, criatividade, profissionalismo, apuro estético em cada detalhe. Cada parte do show destaca a inclusão (há um intérprete de libras no show e um telão na porta do Teatro Municipal transmite o show para quem não conseguiu ou não pôde pagar pelo ingresso),  o empoderamento da mulher, dos mais pobres, da periferia, dos que estão ou estiveram à margem. Revela apuro, estilo, criação artística inédita e reverência aos ídolos e companheiros de jornada.

            Como uma celebração dos/aos orixás, reconta a história, apresenta testemunhos, louva, menciona, revisita nomes e entidades fundamentais para a cultura e a história negra em nosso país, fala de amor, de esperança, reverencia a ancestralidade. Cada canção funciona como um salmo, um versículo, um ponto. É um show sincrético, porque não despreza nossa formação religiosa ou cultural. Não ignora a miscigenação de nosso povo, nem o que ela significa em termos de sofrimento e violência aos povos escravizados e aos povos originários e na agressão e crueldade sofridas nos tempos que seguem, infelizmente.  Porém, reafirma um novo evangelho antigo de respeito à história, à cultura e a todas as pessoas negras e nos recorda de valores que não podem ser esquecidos nem por um momento. Valores inegociáveis para com a dignidade humana.

            Como realização estética e artística, tudo é simbólico, provocativo, polissêmico. Emicida faz história ao celebrar e comemorar os orixás, a negritude, a luta do povo e seu talento, sua força como artista destaca o valor de seu público e a relação com elementos fundamentais de nossa cultura.  

            O Teatro Municipal de São Paulo e o seu entorno tornam-se espaços para um evento histórico que religa nossa história com o sagrado das raízes de nossa brasilidade e me parece uma imagem algo poética cabível ao centenário da Semana de Arte Moderna e compatível com o reposicionamento e o empoderamento de nossa gente, de nossos reais valores antropológicos, artísticos e sociais, alma de nossa cultura. Além disso, as letras e a música de Emicida são sensacionais. O show se concretiza, portanto, em âmbito estético, artístico, político, social e histórico.

            Agradeço à Elba Gaya e à Paulinha Machado que me leram antes e me ajudaram a encontrar as palavras que me faltaram e de que, sem querer, me perdi.

            Expresso meu desejo de que haja Liberdade e Respeito para o povo todo.

 

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