Uma historinha sobre Paulo Freire
Erivelto
Reis
Um
dos momentos mais emocionantes na minha formação como professor nos bancos da
graduação ocorreu em um evento em homenagem a Paulo Freire. Curiosamente,
também foi nesse evento que testemunhei uma das grandes violências intelectuais
contra o professor Paulo Freire.
Esse
momento dual que vivenciei contribuiu enormemente para um breve vislumbre da
real situação da educação, área em que eu sempre desejei atuar, e para a
percepção dos desafios reais a que eu seria submetido como pesquisador e
professor, desde o primeiro semestre de meu ingresso na faculdade, na área de
Letras.
Esse
fato ocorreu em um evento em homenagem a Paulo Freire, que contaria com a aula magna
do proferida pelo professor Moacir Gadotti, presidente do Instituto Paulo
Freire, um intelectual de altíssimo nível e um grande amigo do Patrono da
educação brasileira.
Durante
todo o mês que antecedeu à palestra, a minha faculdade fez divulgação; os
professores e professoras davam exemplos, comentavam artigos; a rede de leitura
que havia prescrevia a leitura de Pedagogia
da autonomia, o professor e filósofo Flávio Pimentel, na disciplina Filosofia
da Educação, nos orientava para o que deveríamos questionar ao lermos a obra e
tomarmos conhecimento do pensamento do autor. Muitos/as professores/as
experientes, especialmente as que tinham construído carreira também na educação
básica, nos falavam de casos pontuais ocorridos em sala de aula em que os
métodos e ensinamentos freirianos os/as tinham ajudado e, naturalmente, os seus
alunos e alunas haviam sido beneficiados.
Mesmo
antes de ingressar na faculdade, eu sabia que Paulo Freire era importante. Eu
sabia que ele havia sido preso. O poeta, meu amigo, Primitivo Paes me contara
da mobilização no interior de São Paulo, em prol da alfabetização de adultos
operários, desenvolvida a partir do trabalho e do exemplo de Paulo Freire. Eu
havia lido no clássico livro de poemas de Thiago de Melo, Faz escuro mas eu canto, com diversos poemas compostos quando o
poeta amazonense encontrava-se exilado no Chile, em 1964, o poema “Canção para
os fonemas da alegria”, dedicado a Paulo Freire.
Em
resumo, todas as referências de gente que eu admirava, de meus professores e
professoras, do pouco que eu conhecia como leitor sobre a vida de Paulo Freire
inflamavam em mim as melhores expectativas por aquele momento. Além do fato de que, por muitos anos, eu
aguardara para realizar o sonho de entrar na faculdade e cursar Letras e aquela
seria a primeira aula magna de que participaria como estudante. E seria
justamente uma aula sobre um professor conhecido no mundo todo e cuja figura eu
associava à defesa da educação fraterna e libertadora dos mais pobres e
oprimidos e que surgia em meu imaginário, fosse pela poesia de Thiago de Mello,
fosse pela fala dos meus professores e professoras, como um Quixote contra a
opressão, um nômade em prol da sabedoria, um Betinho da Educação. Na minha
ingenuidade, eu achava que ninguém poderia vir a atacar ou teria motivos para a
atitude de desmerecer aquele professor e
sua trajetória. Ledo engano.
Chega
a noite da aula magna, auditório lotado, direção da faculdade presente. Todo um
protocolo solene para receber o ilustre palestrante. O Professor Moacir Gadotti
começa a proferir a aula, lembrando a trajetória e algumas das experiências de
Paulo Freire. Projetam-se imagens de Paulo Freire mundo afora, alternadas em
dois momentos bem característicos: abraçado e acolhido pelos mais humildes e
reverenciado no mundo todo por intelectuais, magníficos reitores de
Universidades Históricas e importantíssimas, políticos importantes ligados aos
movimentos populares, presidentes de países desenvolvidos, e até mesmo por reis
e rainhas.
Naquela
noite, algumas histórias de medo, desafios e inseguranças que Paulo Freire teve
que enfrentar aqui em seu próprio país também foram contadas.
Era
incontestável a importância de Paulo Freire para a educação no Brasil e no
mundo. No entanto, a violência intelectual a que me referi no início desse
texto, se deveu a um grupo de alunos e alunas que no fundo do auditório dizia
coisas como: "velho comunista" - algumas fotos de Paulo Freire eram
ao lado de políticos notada e reconhecidamente associados à esquerda e às causas
populares, tendo sido ele próprio um político, secretário de educação na cidade
de São Paulo, na administração de Luiza Erundina, do Partido dos Trabalhadores.
Ouvi
ainda coisas: "aposto que está rico com o dinheiro desses pobres
coitados", assim que imagem de Paulo Freire rodeado de crianças, em uma
"escola" do interior do interior do Brasil, sem paredes e sem
qualquer mínimo recurso de infraestrutura para sua função de escola, apareceu
no telão. E não adiantava dizer que Paulo Freire dedicou sua vida, correu
diversos riscos ao contrariar os poderosos, os militares, os corruptos. Os
insultos irreproduzíveis aqui continuaram durante toda a palestra.
Aquela
situação foi de uma crueldade e de uma violência traumatizantes e reveladoras
dos inúmeros desafios que dali para diante eu precisaria enfrentar como
educador adepto da pedagogia da autonomia, da pedagogia da fraternidade. O
tempo, infelizmente, se encarregaria de provar que minha preocupação era
legítima.
Após
a aula, no espaço dedicado aos comentários de professores/as e alunos/as, a
cada comentário elogioso que destacasse a importância de Paulo Freire, o mesmo
grupo de alunos e alunas no fundo do auditório permanecia irredutível e nada os
demovia dos comentários sarcásticos e agressivos contra a memória e o legado
freiriano.
Notem
que não era uma posição baseada em nenhum contraponto pretensamente teórico,
como eu teria a oportunidade de testemunhar algum tempo depois, num evento na
Bienal Internacional do Livro no Rio de Janeiro, que contava com a presença da
professora Nita Freire, viúva do educador. Também nessa ocasião, alguns
insultos foram proferidos, a despeito do reconhecimento mesmo dos
desrespeitosos interlocutores à obra de Paulo Freire.
Lembrei-me,
naquele dia, da frase célebre do professor Darcy Ribeiro que afirmava que havia
um projeto para que a educação não prosperasse no país. Ao perceber e
testemunhar, mais uma vez, o ataque à memória, à obra e à trajetória de Paulo
Freire entendi que o perverso projeto a que o professor Darcy Ribeiro se
referira, basicamente poderia ser resumido em três eixos: a) não deixar educar;
b) dificultar ao máximo a quem eduque; e c) atacar e desvalorizar os/as
educadores/as, sua formação e sua biografia, mantendo-os/as tensos/as e
inseguros/as e sempre justificar a insanidade e a violência dos ataques com a
pretensa defesa dos interesses dos/as educandos/as.
Voltando
à aula magna: terminada a conferência, muitos alunos e alunas correram para
voltar pra casa depois de um dia exaustivo de trabalho, felizes com a magnifica
aula. Aqueles/as, do grupo que manteve-se fechado ao que era ensinado e
insultando o educador, se foram ainda debochando e afirmando que se não fosse
pelas horas de atividade complementar jamais estariam ali. E os/as alunos/as,
como eu que podiam aguardar, entraram na fila para cumprimentar e solicitar uma
foto e um autógrafo do maravilhoso professor Moacir Gadotti.
Quando
chegou a minha vez, todo formal, agradeci ao professor Gadotti e falei a ele,
brevemente, da importância daquele que era o meu primeiro grande evento
acadêmico. Disse a ele que eu era garçom, mas que sempre quis ser professor e
que me comprometia com ele a, a partir daquele momento, tentar colocar em
prática na minha carreira, ainda em construção, a pedagogia da fraternidade e
da autonomia que percebi no relato sobre a vida e a obra de Paulo Freire. Ainda
formalmente, estendi a mão para um cumprimento ao professor Gadotti, que
sentado à mesa, acabara de me autografar o folder do evento – eu não tinha dinheiro
para comprar um exemplar de um dos livros à venda naquele dia –, ao que ele
levantou-se e disse:
–
Me dá aqui um abraço. Por mim, em apoio a um futuro colega de profissão. E,
certamente, porque seria essa a atitude de Paulo Freire, diante de uma história
como a sua.
Salve
o centenário de Paulo Freire, o educador que nos ensinou a buscar e valorizar a
nossa liberdade e a não desistir de encontrar a nossa felicidade.
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