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Poeta - escritor - cronista - produtor cultural. Professor de Português e Literaturas. Especialista em Estudos Literários pela FEUC. Especialista em Literaturas Portuguesa e Africanas pela Faculdade de Letras da UFRJ. Mestre e Doutor em Literatura Portuguesa pela UFRJ. Nascido em Goiás, na cidade de Rio Verde. Casado. Pai de três filhos.

domingo, 19 de setembro de 2021

Crônica: "Uma historinha sobre Paulo Freire", de Erivelto Reis

 

            Uma historinha sobre Paulo Freire

            Erivelto Reis

                       

 

            Um dos momentos mais emocionantes na minha formação como professor nos bancos da graduação ocorreu em um evento em homenagem a Paulo Freire. Curiosamente, também foi nesse evento que testemunhei uma das grandes violências intelectuais contra o professor Paulo Freire.  

            Esse momento dual que vivenciei contribuiu enormemente para um breve vislumbre da real situação da educação, área em que eu sempre desejei atuar, e para a percepção dos desafios reais a que eu seria submetido como pesquisador e professor, desde o primeiro semestre de meu ingresso na faculdade, na área de Letras.

            Esse fato ocorreu em um evento em homenagem a Paulo Freire, que contaria com a aula magna do proferida pelo professor Moacir Gadotti, presidente do Instituto Paulo Freire, um intelectual de altíssimo nível e um grande amigo do Patrono da educação brasileira.

            Durante todo o mês que antecedeu à palestra, a minha faculdade fez divulgação; os professores e professoras davam exemplos, comentavam artigos; a rede de leitura que havia prescrevia a leitura de Pedagogia da autonomia, o professor e filósofo Flávio Pimentel, na disciplina Filosofia da Educação, nos orientava para o que deveríamos questionar ao lermos a obra e tomarmos conhecimento do pensamento do autor. Muitos/as professores/as experientes, especialmente as que tinham construído carreira também na educação básica, nos falavam de casos pontuais ocorridos em sala de aula em que os métodos e ensinamentos freirianos os/as tinham ajudado e, naturalmente, os seus alunos e alunas haviam sido beneficiados.

            Mesmo antes de ingressar na faculdade, eu sabia que Paulo Freire era importante. Eu sabia que ele havia sido preso. O poeta, meu amigo, Primitivo Paes me contara da mobilização no interior de São Paulo, em prol da alfabetização de adultos operários, desenvolvida a partir do trabalho e do exemplo de Paulo Freire. Eu havia lido no clássico livro de poemas de Thiago de Melo, Faz escuro mas eu canto, com diversos poemas compostos quando o poeta amazonense encontrava-se exilado no Chile, em 1964, o poema “Canção para os fonemas da alegria”, dedicado a Paulo Freire.

            Em resumo, todas as referências de gente que eu admirava, de meus professores e professoras, do pouco que eu conhecia como leitor sobre a vida de Paulo Freire inflamavam em mim as melhores expectativas por aquele momento.         Além do fato de que, por muitos anos, eu aguardara para realizar o sonho de entrar na faculdade e cursar Letras e aquela seria a primeira aula magna de que participaria como estudante. E seria justamente uma aula sobre um professor conhecido no mundo todo e cuja figura eu associava à defesa da educação fraterna e libertadora dos mais pobres e oprimidos e que surgia em meu imaginário, fosse pela poesia de Thiago de Mello, fosse pela fala dos meus professores e professoras, como um Quixote contra a opressão, um nômade em prol da sabedoria, um Betinho da Educação. Na minha ingenuidade, eu achava que ninguém poderia vir a atacar ou teria motivos para a atitude  de desmerecer aquele professor e sua trajetória. Ledo engano.

            Chega a noite da aula magna, auditório lotado, direção da faculdade presente. Todo um protocolo solene para receber o ilustre palestrante. O Professor Moacir Gadotti começa a proferir a aula, lembrando a trajetória e algumas das experiências de Paulo Freire. Projetam-se imagens de Paulo Freire mundo afora, alternadas em dois momentos bem característicos: abraçado e acolhido pelos mais humildes e reverenciado no mundo todo por intelectuais, magníficos reitores de Universidades Históricas e importantíssimas, políticos importantes ligados aos movimentos populares, presidentes de países desenvolvidos, e até mesmo por reis e rainhas.

            Naquela noite, algumas histórias de medo, desafios e inseguranças que Paulo Freire teve que enfrentar aqui em seu próprio país também foram contadas.

            Era incontestável a importância de Paulo Freire para a educação no Brasil e no mundo. No entanto, a violência intelectual a que me referi no início desse texto, se deveu a um grupo de alunos e alunas que no fundo do auditório dizia coisas como: "velho comunista" - algumas fotos de Paulo Freire eram ao lado de políticos notada e reconhecidamente associados à esquerda e às causas populares, tendo sido ele próprio um político, secretário de educação na cidade de São Paulo, na administração de Luiza Erundina, do Partido dos Trabalhadores.

            Ouvi ainda coisas: "aposto que está rico com o dinheiro desses pobres coitados", assim que imagem de Paulo Freire rodeado de crianças, em uma "escola" do interior do interior do Brasil, sem paredes e sem qualquer mínimo recurso de infraestrutura para sua função de escola, apareceu no telão. E não adiantava dizer que Paulo Freire dedicou sua vida, correu diversos riscos ao contrariar os poderosos, os militares, os corruptos. Os insultos irreproduzíveis aqui continuaram durante toda a palestra.

            Aquela situação foi de uma crueldade e de uma violência traumatizantes e reveladoras dos inúmeros desafios que dali para diante eu precisaria enfrentar como educador adepto da pedagogia da autonomia, da pedagogia da fraternidade. O tempo, infelizmente, se encarregaria de provar que minha preocupação era legítima.

            Após a aula, no espaço dedicado aos comentários de professores/as e alunos/as, a cada comentário elogioso que destacasse a importância de Paulo Freire, o mesmo grupo de alunos e alunas no fundo do auditório permanecia irredutível e nada os demovia dos comentários sarcásticos e agressivos contra a memória e o legado freiriano.

            Notem que não era uma posição baseada em nenhum contraponto pretensamente teórico, como eu teria a oportunidade de testemunhar algum tempo depois, num evento na Bienal Internacional do Livro no Rio de Janeiro, que contava com a presença da professora Nita Freire, viúva do educador. Também nessa ocasião, alguns insultos foram proferidos, a despeito do reconhecimento mesmo dos desrespeitosos interlocutores à obra de Paulo Freire.

            Lembrei-me, naquele dia, da frase célebre do professor Darcy Ribeiro que afirmava que havia um projeto para que a educação não prosperasse no país. Ao perceber e testemunhar, mais uma vez, o ataque à memória, à obra e à trajetória de Paulo Freire entendi que o perverso projeto a que o professor Darcy Ribeiro se referira, basicamente poderia ser resumido em três eixos: a) não deixar educar; b) dificultar ao máximo a quem eduque; e c) atacar e desvalorizar os/as educadores/as, sua formação e sua biografia, mantendo-os/as tensos/as e inseguros/as e sempre justificar a insanidade e a violência dos ataques com a pretensa defesa dos interesses dos/as educandos/as.

            Voltando à aula magna: terminada a conferência, muitos alunos e alunas correram para voltar pra casa depois de um dia exaustivo de trabalho, felizes com a magnifica aula. Aqueles/as, do grupo que manteve-se fechado ao que era ensinado e insultando o educador, se foram ainda debochando e afirmando que se não fosse pelas horas de atividade complementar jamais estariam ali. E os/as alunos/as, como eu que podiam aguardar, entraram na fila para cumprimentar e solicitar uma foto e um autógrafo do maravilhoso professor Moacir Gadotti.

            Quando chegou a minha vez, todo formal, agradeci ao professor Gadotti e falei a ele, brevemente, da importância daquele que era o meu primeiro grande evento acadêmico. Disse a ele que eu era garçom, mas que sempre quis ser professor e que me comprometia com ele a, a partir daquele momento, tentar colocar em prática na minha carreira, ainda em construção, a pedagogia da fraternidade e da autonomia que percebi no relato sobre a vida e a obra de Paulo Freire. Ainda formalmente, estendi a mão para um cumprimento ao professor Gadotti, que sentado à mesa, acabara de me autografar o folder do evento – eu não tinha dinheiro para comprar um exemplar de um dos livros à venda naquele dia –, ao que ele levantou-se e disse:

            – Me dá aqui um abraço. Por mim, em apoio a um futuro colega de profissão. E, certamente, porque seria essa a atitude de Paulo Freire, diante de uma história como a sua.

            Salve o centenário de Paulo Freire, o educador que nos ensinou a buscar e valorizar a nossa liberdade e a não desistir de encontrar a nossa felicidade.

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