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Poeta - escritor - cronista - produtor cultural. Professor de Português e Literaturas. Especialista em Estudos Literários pela FEUC. Especialista em Literaturas Portuguesa e Africanas pela Faculdade de Letras da UFRJ. Mestre e Doutor em Literatura Portuguesa pela UFRJ. Nascido em Goiás, na cidade de Rio Verde. Casado. Pai de três filhos.

domingo, 10 de setembro de 2023

Crônica: "Baila comigo: a protonovela do projeto narrativo de Manoel Carlos", de Erivelto Reis

 BAILA COMIGO: A PROTONOVELA

DO PROJETO NARRATIVO DE MANOEL CARLOS
Erivelto Reis
Para o Nilson Xavier, que entende tudo de novelas e para o João Ricardo, que entende tudo de Manoel Carlos e das Helenas.
"Ao fim de cada ato limpo no pano de prato as mãos sujas do sangue das canções" - Drama (Caetano Veloso)
Que a personagem Helena é uma marca, índice máximo do projeto narrativo do novelista Manoel Carlos, mesmo quem não seja tão afeito às novelas pode perceber e identificar facilmente. Há, no entanto, muitos elementos na novela Baila comigo que o autor viria a lapidar e desenvolver ao longo de tramas como Felicidade, História de amor, Por Amor, Laços de família, Mulheres apaixonadas, Em família e Viver a vida.
Manoel Carlos, à maneira de Camilo Castelo Branco, para contar as paixões e de Eça de Queirós, para narrar os defeitos, criou um projeto de narrativa próprio. Não estranho ou avesso à linguagem do gênero do qual se serviria para levar adiante seu projeto pessoal como autor de novelas. Não é que o autor esteja sempre escrevendo a mesma história, mas que recorra a alguns recursos e desenhos de arquitetura narrativa e de desenvolvimento de personagens para articular as suas tramas. Não é errado, não é falta de talento. Antes, configura-se como um domínio absoluto do gênero e da própria obra. Ou seja, ao recorrer, corrige, transforma, amplia, aprofunda, explora novas nuances e os confronta com novas situações.
Ainda que consideremos tratar-se de sua segunda novela (A sucessora foi o primeiro trabalho – a partir dele, percebe-se a estreita ligação de Manoel Carlos com a Literatura), e que a novela Sol de Verão, sua novela seguinte, tenha sido marcada pelo falecimento de um de seus protagonistas, o ator Jardel Filho; é preciso considerar o fato de que Baila comigo será o protótipo do ideário, da embocadura, da arquitetura do projeto narrativo de Manoel Carlos e que esse fato não implica em classificá-la como inacabada, imperfeita. Antes, o enorme sucesso de público e o espaço que ocupa no imaginário dos fãs (o encontro dos gêmeos, o surgimento da primeira Helena) dão provas cabais de que como obra, em seu tempo e depois dele, tenha atingido os seus objetivos. A recorrência não é necessariamente um indício do que ficou por fazer. Nesse caso, acena para o potencial, para a ideia de que é possível fazer ainda mais e melhorar o que já estava bom e agora parece que melhorou.
Entre alguns aspectos de Baila comigo como protonovela que destaquei estão a erudição das personagens. Este é um primeiro ponto que mereceria a atenção. Manoel Carlos é um erudito das artes e da Literatura. E os personagens em suas novelas estão sempre citando autores, obras, filmes, livros, pensamentos, passagens históricas, epifanias que não raro vão conduzir as personagens à elaboração de axiomas que norteiam as motivações humanas e que, em tese, poderiam justificar suas ações e omissões. Note-se, ainda, que a erudição tem como núcleo central uma personagem (às vezes um alter-ego do próprio autor como Olga, em História de amor ou Miguel e Alma em Laços de família, por exemplo), mas se distribui entre diversos personagens a depender das situações e conflitos. Especialmente em cenas de festas ou de conversação de salão – as famosas recepções – ou em jantares, encontros ocasionais inesperados, à maneira de Camilo e de Eça.
Na novela exibida originalmente em 1981, o João Victor de Tony Ramos, Joana de Bety Faria, Marta de Teresa Raquel assumem essas funções. Há também espaço para a sabedoria vinda das experimentações empíricas e mais populares (o Quinzinho, também interpretado por Tony Ramos, por exemplo) que transborda das personagens, tendo como núcleo as interações e empatia das Helenas em sua ambiguidade de papel social oficialmente desempenhado e as angústias decorrentes dos conflitos, dos segredos e das escolhas que fazem ou são obrigadas a fazer. Sabemos todos que cada Helena são duas. Pelo menos duas. E não me refiro apenas a uma percepção de antes e depois no tempo das personagens no enredo. Cada uma são duas no momento da narrativa, no exato instante em que as acompanhamos. Mesmo antes das decisões dramáticas que tomam. E esse aspecto vai sendo alvo de uma verdadeira carpintaria ao longo das tramas. Em Baila comigo, por exemplo, o núcleo mais imediato das relações da protagonista é mais restrito do que o que se dará com as próximas protagonistas de Manoel Carlos. Embora se conserve a estrutura shakespeariana de personagens de apoio e confidência, confrontação amistosa e aconselhamento das personagens em várias tramas, a primeira Helena tem poucas interações se comparada com a Helena de Por amor ou de Mulheres apaixonadas, por exemplo.
Outro ponto importante é a transformação do grau de vilania e requinte que a antagonista secundária que alinhava os conflitos dos arcos semanais vai atingir na obra do novelista. Da Mira de Lídia Brondi, até chegar à Paula de Carolina Ferraz e à Ísis de Débora Secco e à Débora de Viviane Pasmanter, o grau de tensão e as articulações narrativas vão se aprimorar de tal forma que chegam, em certas situações, à ocupar o protagonismo.
Mesma evolução se dá em relação às vilãs que vão ocupar não apenas o espaço da materialidade de suas maldades, como também uma impressionante capacidade de ferir e manipular subjetivamente, psicológica e emocionalmente as suas vítimas. A Branca e as vilãs de Lilian Cabral vão evoluir das maldades burguesas da personagem de Teresa Raquel.
A recorrência da maternagem como conflito permanente e da tensão ética a que estariam sujeitos os profissionais como advogados, em especial os médicos, figuram entre as cartas que o novelista tem como trunfo. Da mesma forma, artistas são retratados como arautos provocadores de uma certa consciência moral e a classe alta ocupa o espaço do médico e o monstro: em algumas situações com personagens capazes de corromper, manipular e de atos violentos e em outros casos - sempre dividindo as tramas e não necessariamente se opondo - com personagens capazes das maiores benevolências.
Até mesmo o envolvimento amoroso entre as personagens, mesmo entre as que se tornam amantes, passa por uma espécie de enamoramento gradativamente desenhado aos olhos do público. Um chamariz para que se envolvam.
O ciúme, a dependência alcoólica, as diferentes formas de preconceito, a violência e a intolerância permeiam as obras e falam do ponto em que se inscrevem, não como dramas universais, mas como temáticas pontuais.
Às metáforas, os textos longos em diálogos entre as personagens (que são formas de brindar o público com atuações dos grandes autores que integram o elenco - não seria exagero supor que alguns só viriam a ser considerados grandes, para a televisão e o grande público, depois de passar por um texto de Manoel Carlos , uma obsessão pela denúncia do etarismo e pela busca de um naturalismo escondido no cotidiano das personagens e o uso de paratextos ou subtextos e intertextos são também elementos já presentes em Baila comigo e que iriam passar por processos evolutivos, a partir de recorrências, como linguagem, construção de personagem e enredo e narrativa ao longo das próximas novelas.
Mudam-se algumas perspectivas talvez em relação à ideia de que o cotidiano é obrigatoriamente moderno, expresso na abertura de Baila comigo. E assim, somos envolvidos pelas aquarelas, fotografias, imagens trabalhadas digitalmente, ao som da bossa nova e da geração de obras desencadeadas a partir dela. E então vemos que um passeio romântico pelas ruas e paisagens da zona sul carioca ao som de Lembra de mim, de Ivan Lins (o novelista perguntaria ou se perguntaria se as pessoas iriam ou irão se lembrar de seus personagens) e dessa forma as aberturas das novelas nos convidam às memórias mais afetivas. Geograficamente, o Leblon (sempre, nem sempre), a Lagoa, Copacabana, Jardim Botânico surgem como espaços de interação... Santa Teresa foi o ponto de partida e, vez ou outra, o Rio Grande do Sul ou alguma cidadezinha charmosa do interior. A aviação, a medicina, o direito, o teatro, a hotelaria e a educação também são recorrentes.
A família, não a história de um país ou fato histórico e, consequentemente, a intimidade, a confissão, a memória e as reminiscências são o núcleo das narrativas. Se todas as famílias sofrem à sua maneira, Manoel Carlos parece ter investigado e lançado luz sobre alguns desses dramas, apresentando-os para o grande público. Baila comigo é o vitorioso início dessa trajetória. Essa relação de recorrência e evolução mereceria um estudo dos especialistas na área.

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