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Poeta - escritor - cronista - produtor cultural. Professor de Português e Literaturas. Especialista em Estudos Literários pela FEUC. Especialista em Literaturas Portuguesa e Africanas pela Faculdade de Letras da UFRJ. Mestre e Doutor em Literatura Portuguesa pela UFRJ. Nascido em Goiás, na cidade de Rio Verde. Casado. Pai de três filhos.

sexta-feira, 22 de março de 2024

Poema: "Silenciosa anatomia do descarte", de Erivelto Reis

Silenciosa anatomia do descarte

Erivelto Reis

 

Com essa areia você construirá seu castelo:

O dia seguinte sem você

Não será o ocaso do mundo.

No seu trabalho (se ainda houver trabalho), na sua rua

Um perfume de passado

Vai desfilar no ar.

Os poucos que amarão você

Irão se aproximar do precipício

E em silêncio ouvirão

Sua voz num eco

Proveniente do luto

Da impotência.

Diante do desastre

Há quem desista,

Ou produza alguma obra de arte...

Mas o que o prolifera mesmo,

Em quase toda parte,

Silenciosa anatomia do descarte,

São caixas cheias do que eram bens

Inestimáveis apenas pra você,

Remorsos inescrutáveis,

Que virão à tona como um refluxo ácido

Saindo das profundezas do estômago

De sua alma.

Os traumas que você houver causado

Se tornarão o vômito das memórias recuperadas

Ou cinematograficamente inventadas,

Numa coreografia de adeus apressado.

Um porteiro, a balconista da padaria

Vão pensar: “ué, faz dias que não o vejo”

Até concluir dizendo com enlevo:

“Coitado... tão novo (mesmo sem ser verdade),

ao menos descansou,

Que deus (se ainda houver deus) o tenha em bom lugar”.

No mais, o de sempre: fluidos corporais, gente infeliz,

Algodão no nariz, vísceras, saudades

E outras bactérias que devoram o corpo.

Com essa areia você construirá seu castelo!

Eu explicaria isso ao meu neto,

(Única criatura da qual eu não seria arquiteto)

Única travessia da qual eu não veria o final do trajeto,

Deixaria escrito num poema,

Escondido na moldura de um quadro

Ou num cofre de mim mesmo:

Como um código de um diálogo para sempre indecifrado.


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