Silenciosa anatomia do descarte
Erivelto Reis
Com essa areia você construirá seu
castelo:
O dia seguinte sem você
Não será o ocaso do mundo.
No seu trabalho (se ainda houver
trabalho), na sua rua
Um perfume de passado
Vai desfilar no ar.
Os poucos que amarão você
Irão se aproximar do precipício
E em silêncio ouvirão
Sua voz num eco
Proveniente do luto
Da impotência.
Diante do desastre
Há quem desista,
Ou produza alguma obra de arte...
Mas o que o prolifera mesmo,
Em quase toda parte,
Silenciosa anatomia do descarte,
São caixas cheias do que eram bens
Inestimáveis apenas pra você,
Remorsos inescrutáveis,
Que virão à tona como um refluxo
ácido
Saindo das profundezas do estômago
De sua alma.
Os traumas que você houver causado
Se tornarão o vômito das memórias
recuperadas
Ou cinematograficamente inventadas,
Numa coreografia de adeus
apressado.
Um porteiro, a balconista da
padaria
Vão pensar: “ué, faz dias que não
o vejo”
Até concluir dizendo com enlevo:
“Coitado... tão novo (mesmo sem
ser verdade),
ao menos descansou,
Que deus (se ainda houver deus) o
tenha em bom lugar”.
No mais, o de sempre: fluidos
corporais, gente infeliz,
Algodão no nariz, vísceras,
saudades
E outras bactérias que devoram o
corpo.
Com essa areia você construirá seu
castelo!
Eu explicaria isso ao meu neto,
(Única criatura da qual eu não
seria arquiteto)
Única travessia da qual eu não
veria o final do trajeto,
Deixaria escrito num poema,
Escondido na moldura de um quadro
Ou num cofre de mim mesmo:
Como um código de um diálogo para
sempre indecifrado.
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