Ainda Estou Aqui, Fernanda Torres e alguns Detalhes
Erivelto Reis
Fernanda Torres fez um trabalho poucas vezes visto na história do cinema mundial. Um método de atuação pela contenção absoluta. Um trabalho próximo - e entendo, superior- ao de Jodie Foster em Nell ou Juliane Moore em Ensaio sobre a cegueira. Torcendo muito. Mas a história já está sendo feita.
Há outras muitas camadas de qualidade superior no filme Ainda Estou Aqui. A memória de Rubens Paiva, a luta de Eunice
Paiva e seu legado pela democracia. A oportunidade de avisar claramente a todas as pessoas que os perversos detratores de nossa democracia mantêm uma sede de crueldade e de poder represada desde 1988. E muitos dos torturadores e seus hediondos admiradores ainda estão impunes e entre nós, seja pela herança do horror e da dor que nos impuseram, seja por seus asseclas, que tanto anseiam por emular aquele tempo de medo, supressão da arte, da liberdade, da democracia e dos direitos individuais e esperam promover a tortura e a ditadura em pleno século XXI em nosso país.
Evidentemente, o texto potente de Marcelo Rubens Paiva, que transcende a questão das categorias de gênero, especialmente considerando-se autobiografia e autoficção é uma mola propulsora da narrativa.
Destaco ainda o uso da trilha sonora como personagem - como bem percebeu minha querida amiga Simone Batista, a atuação de
Selton Mello e o roteiro urdido como palimpsesto do texto do qual se origina e de nossa própria história. Fernanda Torres será para sempre a imagem de Eunice e desse cinema potente e vertiginoso produzido em nosso país. Um patrimônio de nossa arte, um exemplo das nossas maiores conquistas em todos os segmentos, um marco do talento de nossa gente.
É preciso comentar que interpretação fantástica de Erasmo Carlos para uma composição com Roberto Carlos, lá dos idos dos anos 60/70 é uma chave poderosa de acesso à atmosfera daquela época. Erasmo Carlos é um dos nossos maiores compositores e É preciso ter cuidado,meu amigo dá prova disso mais uma vez. No entanto, o que sistematicamente se tem apagado desde o estouro da obra cinematográfica Ainda estou aqui é a possibilidade de se reler no acervo da dupla Roberto e Erasmo uma intencionalidade e ações artísticas e políticas de crítica e denúncia social, no âmbito da composição e da interpretação de Roberto Carlos, especialmente nos discos de 1969 e de 1971, mas não somente nesses discos.
Não vou entrar no mérito aqui nesse espaço. Mas convido a quem me lê a ouvir os discos. No caso de Erasmo, o Tremendão, que sempre manteve a relação com o Rock e, consequentemente, com uma postura de contestação social. Essa rebeldia e esse posicionamento eram mais aparentes e visíveis. No entanto, seja pelo gênero romântico assumido por Roberto Carlos desde o álbum O inimitável de 1968, seja por leitura descontextualizada de uma foto com uma "condecoração" forçada - para uso e sequestro da imagem do artista pelo governo militar e pela existência de um memorando militar sobre autorização para um evento com uma menção particular ao gosto pelo artista, e mais nenhuma prova real, criou-se uma fantasiosa justificativa, (uma lenda urbana) para desdenhar, acusar e depreciar a obra de Roberto e se questionar, sem analisar ou conhecer a fundo o alcance de suas obras, o seu posicionamento ou a sua maneira de lutar contra aquele sistema. A isso juntemos alguns egos feridos pelas recusas do artista...
Caetano, Chico, Gal, Nara, Elis, Tom Jobim, Gil e até mesmo Vandré reconheceram o trabalho, o "posicionamento" e a importância de Roberto. E a quantos e quantas ele ajudou em segredo durante aquele período terrível. Felizmente, sempre é tempo de rever posicionamentos e que bom que a arte nos ajuda, que Ainda estou aqui vem recolocar muitas coisas nas prateleiras certas. Ou pelo menos em prateleiras diferentes.
O post é pra falar do filme, pra exaltar o cinema brasileiro, pra falar de nossa história e de nossa cultura, pra declarar minha admiração e gratidão pelo trabalho de Fernanda Torres, que independentemente do que venha a ocorrer no Oscar hoje já nos encheu de orgulho e esperança. Ainda estou aqui confirma que há muitos detalhes não tão pequenos que são coisas muito grandes pra esquecer.
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