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Poeta - escritor - cronista - produtor cultural. Professor de Português e Literaturas. Especialista em Estudos Literários pela FEUC. Especialista em Literaturas Portuguesa e Africanas pela Faculdade de Letras da UFRJ. Mestre e Doutor em Literatura Portuguesa pela UFRJ. Nascido em Goiás, na cidade de Rio Verde. Casado. Pai de três filhos.

sábado, 30 de outubro de 2021

Crônica: "Assédio Moral, mas com Ternura e (Re)Conhecimento", de Erivelto Reis

 

ASSÉDIO MORAL, MAS COM TERNURA E (RE)CONHECIMENTO

Erivelto Reis

 

          Era uma vez um assédio moral... Eu queria começar assim. Mas esse não é um conto de fadas. (Leia com acento irônico, tá?!).

A gente sente que está trabalhando no lugar certo quando se depara com um nível socioeconômico, cultural, estético, artesanal de assédio moral praticado com classe, com refinamento, com entrelinha, com suporte e contexto. Um assédio moral amplo o suficiente para intimidar a todos e todas, mas sutil a ponto de levar o assediado ou assediada da vez a pensar, envergonhadíssimo/a: “hum, tô achando que isso é comigo”.

Ser moralmente assediado é um indício inequívoco de que você soube realmente escolher a sua profissão. Já pensou que infelicidade sofrer assédio moral numa profissão de que você nem gosta?

          O assédio moral é um extra, é um “a mais”, é um plus, é um “certificado de qualidade” nos descalabros que alguém possa experimentar em sua trajetória profissional.

 Não basta apenas te subvalorizarem ou desvalorizarem como política de governo ou política empresarial.

Não basta apenas pagarem mal ou reduzirem as suas condições de trabalho ao mínimo para a realização de sua tarefa (como se te deixassem num mundo sem nada, sem eira nem beira, e dissessem: “agradeça porque você ainda tem oxigênio para respirar. Tá reclamando do quê?”) ... É preciso assediar como quem empreende.

Não basta apenas ignorar a sua formação continuada, sua titulação, sua trajetória dentro da área na qual você atua – um cargo que dê a outrem o poder de te assediar parece ser o antídoto pra qualquer qualificação.

O ideal para o assediador ou para os chefes dos assediadores parece ser a prática de nivelar por baixo as interações, no que concerne a respeitar a carreira, valorizar e dar condições de trabalho. Os gestores parecem ter feeling para escolher quem possa e queira e saiba assediar indistintamente, mediante a repetida justificativa, quase um mantra, um salvo conduto, de afirmar que “a chefia está cobrando”.  

O assediador é teu amigão, convenhamos. Vai te ferrar por uma coisa que não é sua responsabilidade, mas te avisa antes. Fala sério.

Nesse caso, a premissa é ter alguém disposto a fazer o serviço do dia a dia do assédio moral para livrar a cara da secretaria, da gerência, do governo, do dono da empresa, da corporação, da repartição, do responsável pelo espaço, qualquer que seja ele, onde o assédio ocorra, se alguma coisa der errada. As poucas leis que nos restam atrapalham a jornada, a escalada de assédio dessa gente iluminada.

Já não se faz mais aquele assédio moleque de antigamente. Assédio arte, maroto, criativo, perspicaz. Aquele assédio moral da piadinha ou da indireta, meio que escapando sem querer, na roda dos escolhidos contra o incauto ou incauta que nem sabe que a sua batata está sendo assada.

Aquele assédio existencial de repetir, normalmente depois de um toque, que ninguém é insubstituível, e que o assediador não quer de jeito nenhum que o caso vá parar na “chefia” – ou no nome do setor que seja equivalente ao departamento que deveria planejar e zelar para que as situações de assédio não ocorressem, mas que acaba é legitimando pequenos e grandes assédios morais capazes de destruir carreiras.

Esse tipo de frase dita em tom de conselho quando você está sendo descascado ao vivo e a cores, on line, por e-mail, torpedo, por áudio, vídeochamada etc., por algo que nem é sua responsabilidade e que destaca amistosamente que é fundamental que você reveja sua postura porque sua personalidade te atrapalha e você nem é tudo isso que você pensa.

Tampouco vemos o tempo todo aquele refinamento do assédio travestido de memorando, de resolução, de e-mail oficial... isso eram outros tempos. Um assédio clássico. Daqueles que deixam provas institucionais. É um tipo de assédio moral como os de antigamente, que ensinou os assediadores e assediadoras não a pararem de assediar, mas a travestir o assédio sob a forma de “pontos de vista conflitantes”, “problemas interpessoais”, “novas diretrizes”, “projetos reestruturastes”, “recuperação de perdas”, “pequenos toques”, “não é culpa de ninguém, mas você tem de resolver”.

Imaginem: o assediador é um ser de luz que não tem problema com ninguém a quem não esteja assediando – só com você, que por uma infeliz situação de alinhamento do mapa astral, é um assediado/a incompetente e relapso/a. O mundo corporativo, educacional, empresarial é do tamanho de uma noz. E coincidências acontecem.

Podem me chamar de saudosista: mas já foi o tempo em que você precisava pelo menos estar no espaço físico da empresa, da indústria, da repartição, do escritório, da escola para ser assediado. O mundo está conectado: e o assédio hoje é delivery, mesmo que você não peça (olha o assediador: “fulano/a parece que gosta de passar vergonha. De ser chamado/a a atenção”). Você pode até tirar licença ou férias da empresa, mas não tira férias do assédio. Ele aparece. Ele brota. Ele vai até você onde quer que você esteja: na sua casa, na praia, no campo, no posto de vacinação, no supermercado...

Talvez já tenha acontecido: você está no recanto da sua intimidade, dando aquela namoradinha gostosa, e, de repente, lá está a mensagem do assediador, nas ondas do teu wifi, na tela do teu celular, que vibra broxante e inconveniente, e te rouba, no teu horário de folga, o direito de não continuar a ser assediado.

Ou então: naquele momento em que você, antes de entrar na missa, no culto, na sessão centro espírita ou no terreiro ao dar uma última olhada e desligar o aparelho celular, antes de voltar o pensamento para entidade superior, e lá está a mensagem de assédio: disfarçada sob o manto da proatividade, de planejamento, de aviso, de lembrete. Na maioria das vezes informando pra geral (dizem: “socializando o problema, o fato”) algo que deveria ser conversado em particular com o devido destinatário da mensagem no local de trabalho em seu dia e em seu turno, se e quando, além do cargo, o remetente da mensagem tivera alguma base legal para a reclamação, o informe, o assédio.

É como se o cartão de crédito enviasse um comunicado com um extrato a todos os clientes por causa de apenas um devedor. E nós sabemos como as empresas de cartão de crédito têm expertise em transformar pagadores corretos em devedores deprimidos e contumazes. O assédio moral são os juros abusivos que o teu patrão cobra de você por algo que ele não te deu e que você já pagou faz tempo.

Felizmente, está surgindo uma nova geração de assediadores e assediadoras. Mais conscientes, mais ciosos do aperfeiçoamento e da naturalização do assédio como índice permanente de geração e aferição de qualidade. Muitos e muitas dessa nova geração oriundas das mesmas dificuldades e desafios que ora afligem e impedem seus pares de mostrarem toda a subserviência que seus patrões, secretários de educação, chefes de setor, e quetais esperam que eles e elas tenham. Parece que anos de assédio moral não foram suficientes para quebrar a resistência dessa gente indolente e atrevida que não se dobra e reage aos/às assediadores/as.

É muito importante, no atual cenário mundial, que haja assediadores com consciência de classe, que se identifiquem com os profissionais que estão assediando, a ponto de reconhecer que nada que digam em defesa de si mesmos/as, ao serem assediados/as, justifica a incompetência que lhes seja atribuída.

Nota-se que os assediadores tentam minar a resistência dos assediados em abandonar posturas éticas e profissionais inegociáveis. E que o assédio visa camuflar a incompetência dos gestores públicos.

Não é assediar que irrita o assediador. Disse ele até gosta. Mas o fato de que o assédio – única coisa real que ele produz no espaço onde trabalha é realizado dentro e fora do horário comercial. Além disso, o assediar, têm a dupla função de realizar o trabalho de intimidar aos demais membros da equipe, do grupo de whatsapp, do setor, que são obrigados a tomar conhecimento daquele assédiozinho quase carinhoso de botar o funcionário ou funcionária, alvo do assédio, no seu devido lugar. Que, todos sabemos, é um lugar de medo, insegurança, opressão, incerteza e baixíssima autoestima.

Produzir em equipe é isso. Assediar como princípio de gestão e controle. E não será alguém que não aceita ser assediado/a que vai quebrar o padrão da empresa, escola, indústria, comércio ou repartição. Afinal, é assediando que se progride.

Ninguém sabe como é difícil para assediador se especializar na burocracia e na linguagem que o caracteriza. Cobrar a produção, o comportamento, a técnica, a habilidade para algo que, na maioria das vezes, ele não entende ou seria capaz de executar se estivesse na pele do assediado exige muito desprendimento, muita doação. Afinal, não se pode deixar para amanhã o assédio que se pode produzir hoje.

Por que deixar para conversar pessoalmente no dia seguinte, a respeito de algo que só poderá ser resolvido presencialmente, quando se pode mandar um áudio para tirar do equilíbrio emocional, da harmonia familiar um/a profissional que sempre agiu corretamente. Por que não assediar on-line para com que o assediado ou assediada perca o sono hoje, por conta de algo que se poderia resolver em horário comercial? É até uma questão de solidariedade do assediado para com o assediador. Assédio moral, sim, mas sem perder a ternura.

Outro dado importante é que sindicatos, tratados e convenções profissionais, insisto: a formação e o histórico do assediado, pouco ou nada valem diante da urgência da mensagem de assédio. Elas – as mensagens de assédio – de tão comuns já deveriam constar dos planejamentos, fazer parte da rotina das grandes empresas, do dia a dia do servidor, do checklist de atividades. Que “sextou” que nada! “Happy hour” pra quê? Quando se pode sair do trabalho com o peso do assédio moral nas costas, com um mundo de tarefas pra fazer em casa sem a devida remuneração?

Só os ingênuos não perceberam que o assédio moral parece ser a única forma de confraternização possível.

A autoestima de um indivíduo pode ser reduzida a uma massa mole, um slime emocional de inseguranças, um poço sem fundo de revoltas contra as sistemáticas injustiças, perseguição pessoal e profissional e exploração laboral, a desigualdade salarial, as afinidades eletivas que desaguam em injustificáveis protecionismos... mas a empresa, a repartição, os chefes, as secretarias devem estar satisfeitas. As metas devem ser batidas. O Assédio como missão. Mas não coloca isso no cartão da empresa.

A paz e a qualidade têm de estar documentadas, mesmo que sejam uma ficção barata de quinta categoria e sem qualquer base legal de sustentação. E ai daquele que se rebele, questione e retruque. É a desgraça sem fim. É a dor de cabeça. É o climão ad eternum ou enquanto o assediador não te jogar pra fora do carro de seu próprio local de trabalho em alta velocidade como num filme de James Bond ou como no multiverso de Os Vingadores. O assédio moral é o cupim da estabilidade, caso você seja um funcionário público. É uma ferrugem, uma corrosão permanente.

O assédio moral pretende garantir, na iniciativa privada e no serviço público, a servidão do/a profissional capacitado/a e qualificado/a aos interesses de chefes comprometidos com valores outros que não os inerentes ao serviço e às boas práticas profissionais.

Pensem: um funcionário que produz bem com péssimas condições de trabalho, deixa claro que mesmo que o assédio torne ainda piores essas condições, ainda continuará produzindo. É uma lógica irrefutável.

Admirável, ainda, é como os assediadores não se atrapalham nem se assediam entre si. E olha que nem usam crachá. Parece que se reconhecem. Haveria uma confraria de assediadores? É como se tivessem como princípio: “Deus me livre de assediar um colega assediador no exato momento em que ele está assediando alguém que não cumpriu o que a chefia só decidiu executar/implementar há meia hora”. O Brasil é o paraíso do assédio moral institucionalizado. Aliás, uma instituição que nunca parou de funcionar.

Ouvi dizer que existem, conheço e até trabalho com alguns chefes, diretores, coordenadores, que não assediam colegas e seus comandados nem sob pressão de superiores, mesmo que percam o cargo, mesmo sabendo que depois deles possa vir um outro assediador.

Pelo andar da carruagem, no entanto, essas pessoas serão chamadas em breve para um curso de reciclagem. 

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