ASSÉDIO
MORAL, MAS COM TERNURA E (RE)CONHECIMENTO
Erivelto Reis
Era uma vez um assédio moral... Eu
queria começar assim. Mas esse não é um conto de fadas. (Leia com acento
irônico, tá?!).
A
gente sente que está trabalhando no lugar certo quando se depara com um nível socioeconômico,
cultural, estético, artesanal de assédio moral praticado com classe, com
refinamento, com entrelinha, com suporte e contexto. Um assédio moral amplo o
suficiente para intimidar a todos e todas, mas sutil a ponto de levar o
assediado ou assediada da vez a pensar, envergonhadíssimo/a: “hum, tô achando
que isso é comigo”.
Ser
moralmente assediado é um indício inequívoco de que você soube realmente
escolher a sua profissão. Já pensou que infelicidade sofrer assédio moral numa
profissão de que você nem gosta?
O assédio moral é um extra, é um “a
mais”, é um plus, é um “certificado de qualidade” nos descalabros que alguém
possa experimentar em sua trajetória profissional.
Não basta apenas te subvalorizarem ou
desvalorizarem como política de governo ou política empresarial.
Não
basta apenas pagarem mal ou reduzirem as suas condições de trabalho ao mínimo para
a realização de sua tarefa (como se te deixassem num mundo sem nada, sem eira
nem beira, e dissessem: “agradeça porque você ainda tem oxigênio para respirar.
Tá reclamando do quê?”) ... É preciso assediar como quem empreende.
Não
basta apenas ignorar a sua formação continuada, sua titulação, sua trajetória
dentro da área na qual você atua – um cargo que dê a outrem o poder de te
assediar parece ser o antídoto pra qualquer qualificação.
O
ideal para o assediador ou para os chefes dos assediadores parece ser a prática
de nivelar por baixo as interações, no que concerne a respeitar a carreira,
valorizar e dar condições de trabalho. Os gestores parecem ter feeling para escolher quem possa e
queira e saiba assediar indistintamente, mediante a repetida justificativa,
quase um mantra, um salvo conduto, de afirmar que “a chefia está cobrando”.
O
assediador é teu amigão, convenhamos. Vai te ferrar por uma coisa que não é sua
responsabilidade, mas te avisa antes. Fala sério.
Nesse
caso, a premissa é ter alguém disposto a fazer o serviço do dia a dia do
assédio moral para livrar a cara da secretaria, da gerência, do governo, do
dono da empresa, da corporação, da repartição, do responsável pelo espaço, qualquer
que seja ele, onde o assédio ocorra, se alguma coisa der errada. As poucas leis
que nos restam atrapalham a jornada, a escalada de assédio dessa gente
iluminada.
Já
não se faz mais aquele assédio moleque de antigamente. Assédio arte, maroto,
criativo, perspicaz. Aquele assédio moral da piadinha ou da indireta, meio que
escapando sem querer, na roda dos escolhidos contra o incauto ou incauta que
nem sabe que a sua batata está sendo assada.
Aquele
assédio existencial de repetir, normalmente depois de um toque, que ninguém é
insubstituível, e que o assediador não quer de jeito nenhum que o caso vá parar
na “chefia” – ou no nome do setor que seja equivalente ao departamento que
deveria planejar e zelar para que as situações de assédio não ocorressem, mas
que acaba é legitimando pequenos e grandes assédios morais capazes de destruir
carreiras.
Esse
tipo de frase dita em tom de conselho quando você está sendo descascado ao vivo
e a cores, on line, por e-mail, torpedo, por áudio, vídeochamada etc., por algo
que nem é sua responsabilidade e que destaca amistosamente que é fundamental
que você reveja sua postura porque sua personalidade te atrapalha e você nem é
tudo isso que você pensa.
Tampouco
vemos o tempo todo aquele refinamento do assédio travestido de memorando, de
resolução, de e-mail oficial... isso eram outros tempos. Um assédio clássico.
Daqueles que deixam provas institucionais. É um tipo de assédio moral como os
de antigamente, que ensinou os assediadores e assediadoras não a pararem de
assediar, mas a travestir o assédio sob a forma de “pontos de vista
conflitantes”, “problemas interpessoais”, “novas diretrizes”, “projetos
reestruturastes”, “recuperação de perdas”, “pequenos toques”, “não é culpa de
ninguém, mas você tem de resolver”.
Imaginem:
o assediador é um ser de luz que não tem problema com ninguém a quem não esteja
assediando – só com você, que por uma infeliz situação de alinhamento do mapa
astral, é um assediado/a incompetente e relapso/a. O mundo corporativo,
educacional, empresarial é do tamanho de uma noz. E coincidências acontecem.
Podem
me chamar de saudosista: mas já foi o tempo em que você precisava pelo menos
estar no espaço físico da empresa, da indústria, da repartição, do escritório,
da escola para ser assediado. O mundo está conectado: e o assédio hoje é
delivery, mesmo que você não peça (olha o assediador: “fulano/a parece que
gosta de passar vergonha. De ser chamado/a a atenção”). Você pode até tirar
licença ou férias da empresa, mas não tira férias do assédio. Ele aparece. Ele
brota. Ele vai até você onde quer que você esteja: na sua casa, na praia, no
campo, no posto de vacinação, no supermercado...
Talvez
já tenha acontecido: você está no recanto da sua intimidade, dando aquela
namoradinha gostosa, e, de repente, lá está a mensagem do assediador, nas ondas
do teu wifi, na tela do teu celular, que vibra broxante e inconveniente, e te
rouba, no teu horário de folga, o direito de não continuar a ser assediado.
Ou
então: naquele momento em que você, antes de entrar na missa, no culto, na
sessão centro espírita ou no terreiro ao dar uma última olhada e desligar o
aparelho celular, antes de voltar o pensamento para entidade superior, e lá
está a mensagem de assédio: disfarçada sob o manto da proatividade, de
planejamento, de aviso, de lembrete. Na maioria das vezes informando pra geral
(dizem: “socializando o problema, o fato”) algo que deveria ser conversado em
particular com o devido destinatário da mensagem no local de trabalho em seu
dia e em seu turno, se e quando, além do cargo, o remetente da mensagem tivera
alguma base legal para a reclamação, o informe, o assédio.
É
como se o cartão de crédito enviasse um comunicado com um extrato a todos os
clientes por causa de apenas um devedor. E nós sabemos como as empresas de
cartão de crédito têm expertise em transformar pagadores corretos em devedores
deprimidos e contumazes. O assédio moral são os juros abusivos que o teu patrão
cobra de você por algo que ele não te deu e que você já pagou faz tempo.
Felizmente,
está surgindo uma nova geração de assediadores e assediadoras. Mais
conscientes, mais ciosos do aperfeiçoamento e da naturalização do assédio como
índice permanente de geração e aferição de qualidade. Muitos e muitas dessa
nova geração oriundas das mesmas dificuldades e desafios que ora afligem e
impedem seus pares de mostrarem toda a subserviência que seus patrões,
secretários de educação, chefes de setor, e quetais esperam que eles e elas
tenham. Parece que anos de assédio moral não foram suficientes para quebrar a
resistência dessa gente indolente e atrevida que não se dobra e reage aos/às
assediadores/as.
É
muito importante, no atual cenário mundial, que haja assediadores com
consciência de classe, que se identifiquem com os profissionais que estão
assediando, a ponto de reconhecer que nada que digam em defesa de si mesmos/as,
ao serem assediados/as, justifica a incompetência que lhes seja atribuída.
Nota-se
que os assediadores tentam minar a resistência dos assediados em abandonar
posturas éticas e profissionais inegociáveis. E que o assédio visa camuflar a
incompetência dos gestores públicos.
Não
é assediar que irrita o assediador. Disse ele até gosta. Mas o fato de que o
assédio – única coisa real que ele produz no espaço onde trabalha é realizado
dentro e fora do horário comercial. Além disso, o assediar, têm a dupla função
de realizar o trabalho de intimidar aos demais membros da equipe, do grupo de
whatsapp, do setor, que são obrigados a tomar conhecimento daquele assédiozinho
quase carinhoso de botar o funcionário ou funcionária, alvo do assédio, no seu
devido lugar. Que, todos sabemos, é um lugar de medo, insegurança, opressão,
incerteza e baixíssima autoestima.
Produzir
em equipe é isso. Assediar como princípio de gestão e controle. E não será
alguém que não aceita ser assediado/a que vai quebrar o padrão da empresa,
escola, indústria, comércio ou repartição. Afinal, é assediando que se
progride.
Ninguém
sabe como é difícil para assediador se especializar na burocracia e na
linguagem que o caracteriza. Cobrar a produção, o comportamento, a técnica, a
habilidade para algo que, na maioria das vezes, ele não entende ou seria capaz
de executar se estivesse na pele do assediado exige muito desprendimento, muita
doação. Afinal, não se pode deixar para amanhã o assédio que se pode produzir
hoje.
Por
que deixar para conversar pessoalmente no dia seguinte, a respeito de algo que
só poderá ser resolvido presencialmente, quando se pode mandar um áudio para
tirar do equilíbrio emocional, da harmonia familiar um/a profissional que
sempre agiu corretamente. Por que não assediar on-line para com que o assediado
ou assediada perca o sono hoje, por conta de algo que se poderia resolver em
horário comercial? É até uma questão de solidariedade do assediado para com o
assediador. Assédio moral, sim, mas sem perder a ternura.
Outro
dado importante é que sindicatos, tratados e convenções profissionais, insisto:
a formação e o histórico do assediado, pouco ou nada valem diante da urgência
da mensagem de assédio. Elas – as mensagens de assédio – de tão comuns já
deveriam constar dos planejamentos, fazer parte da rotina das grandes empresas,
do dia a dia do servidor, do checklist de atividades. Que “sextou” que nada!
“Happy hour” pra quê? Quando se pode sair do trabalho com o peso do assédio
moral nas costas, com um mundo de tarefas pra fazer em casa sem a devida
remuneração?
Só
os ingênuos não perceberam que o assédio moral parece ser a única forma de
confraternização possível.
A
autoestima de um indivíduo pode ser reduzida a uma massa mole, um slime
emocional de inseguranças, um poço sem fundo de revoltas contra as sistemáticas
injustiças, perseguição pessoal e profissional e exploração laboral, a
desigualdade salarial, as afinidades eletivas que desaguam em injustificáveis
protecionismos... mas a empresa, a repartição, os chefes, as secretarias devem
estar satisfeitas. As metas devem ser batidas. O Assédio como missão. Mas não
coloca isso no cartão da empresa.
A
paz e a qualidade têm de estar documentadas, mesmo que sejam uma ficção barata
de quinta categoria e sem qualquer base legal de sustentação. E ai daquele que
se rebele, questione e retruque. É a desgraça sem fim. É a dor de cabeça. É o
climão ad eternum ou enquanto o
assediador não te jogar pra fora do carro de seu próprio local de trabalho em
alta velocidade como num filme de James Bond ou como no multiverso de Os
Vingadores. O assédio moral é o cupim da estabilidade, caso você seja um
funcionário público. É uma ferrugem, uma corrosão permanente.
O
assédio moral pretende garantir, na iniciativa privada e no serviço público, a
servidão do/a profissional capacitado/a e qualificado/a aos interesses de
chefes comprometidos com valores outros que não os inerentes ao serviço e às
boas práticas profissionais.
Pensem:
um funcionário que produz bem com péssimas condições de trabalho, deixa claro
que mesmo que o assédio torne ainda piores essas condições, ainda continuará produzindo.
É uma lógica irrefutável.
Admirável,
ainda, é como os assediadores não se atrapalham nem se assediam entre si. E
olha que nem usam crachá. Parece que se reconhecem. Haveria uma confraria de
assediadores? É como se tivessem como princípio: “Deus me livre de assediar um
colega assediador no exato momento em que ele está assediando alguém que não
cumpriu o que a chefia só decidiu executar/implementar há meia hora”. O Brasil
é o paraíso do assédio moral institucionalizado. Aliás, uma instituição que
nunca parou de funcionar.
Ouvi
dizer que existem, conheço e até trabalho com alguns chefes, diretores,
coordenadores, que não assediam colegas e seus comandados nem sob pressão de
superiores, mesmo que percam o cargo, mesmo sabendo que depois deles possa vir
um outro assediador.
Pelo
andar da carruagem, no entanto, essas pessoas serão chamadas em breve para um
curso de reciclagem.
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