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Poeta - escritor - cronista - produtor cultural. Professor de Português e Literaturas. Especialista em Estudos Literários pela FEUC. Especialista em Literaturas Portuguesa e Africanas pela Faculdade de Letras da UFRJ. Mestre e Doutor em Literatura Portuguesa pela UFRJ. Nascido em Goiás, na cidade de Rio Verde. Casado. Pai de três filhos.

quinta-feira, 30 de outubro de 2025

Poema: "Mormaço", de Erivelto Reis

 Mormaço

Erivelto Reis

 

Não é a chuva

Mas fica pingando

Sangue

Depois forma uma poça

(Que a muita lama se mistura)

Depois um Rio...

Não é a chuva

Mas fica pingando

Sangue

Daí forma um poço sem fundo

Um oceano de amargura

É sangue jorrando

Longe das casas projetadas

Irrigando projetos e carreiras políticas

Inundando cofres de empresas parceiras

Ondeando paraísos fiscais

Lavando dinheiro

E mentindo que se lavam honras!

Mas é sangue alheio

Jorrando longe

Dos condomínios fechados

Dos carros blindados

Dos amigos influentes

É um mar de sangue

Instagramável

Fluindo de discursos odiosos

São forças de proteção

Colocadas à beira do abismo

Pais e mães de família

Ambiguamente transformados

Em alvos e algozes...

Depois o choro e o lamento

Traumas e dramas e dores atrozes

Depois o escandaloso

Silêncio de uma vastidão

De consciências e de vozes...

Não é chuva

É mormaço e ódio

Por enquanto.

Depois, é muito sangue jorrando...

domingo, 26 de outubro de 2025

Poema: "Enlutados", de Erivelto Reis

 Enlutados

Erivelto Reis
O sistema é todo feito para nos adoecer
Cooptam nossos colegas,
Que sucumbem ante a possibilidade
De se retirar do insalubre
E desgastante espaço da arena
Que se tornou a sala de aula.
Daí, lutamos contra a demagogia,
Lutamos as guerras que nossos
Melhores alunos e alunas travam...
Lutamos contra a cooptação
De seus corações e mentes
Impulsionada pela proposital
Desvalorização da disciplina para o estudo
Em favor da mediana conformação.
Lutamos contra as telas, contra as corporações
Que, em conluio com a administração da educação,
Metem o pé na porta
E nos veem e nos vendem
Como improdutivos colaboradores
Que sua bondosa condescendência* (acento irônico)
Poderá aproveitar de alguma forma...
Na escola que é do povo, na escola que deveria ser nossa.
Lutamos contra o assédio moral,
A superlotação, a falta de recursos,
A mediocridade da gestão local
Acomodada ou emulada...
Lutamos contra aqueles
Que transferem responsabilidades suas
Para os profissionais da escola...
Lutamos ainda mais porque sabemos
Que em algum lugar
Poderá haver gestores vibrantes,
Parceiros e preparados
Para fazer a diferença
E colegas a fim de topar o desafio...
Lutamos mais ainda por
Nos sentirmos sozinhos,
Feridos todo dia um pouquinho.
Lutamos contra as violências simbólicas,
As ameaças no mundo fora da escola...
Lutamos pra fechar o mês,
Equilibrando os pratos e dividindo o nosso tempo
Entre todas as escolas e turmas possíveis.
Adoecemos de medo dos alunos não-estudantes
Que tentam nos intimidar a todo momento...
Adoecemos de saudade dos que amamos
De não ter tempo pra pensar neles
De não ter tempo pra pensar em nós...
Lutamos contra a avalanche de burocracia,
Contra a puxada de tapete sórdida e inescrupulosa...
Lutamos contra a judicialização, demonização
De qualquer ação pedagógica
E contra a glorificação do óbvio
E a didática da preguiça.
Lutamos tanto, que até quando estamos felizes
Estamos preocupados
E quando estamos tristes
Damos o nome de domingo à noite.
Ou de semana inteira...
Lutamos e vamos nos calando
É ao nosso velório que assistimos
Diante das lutas que travamos.
Lutamos contra a ingratidão,
Lutamos contra a falta de ética,
Lutamos de coração partido
Quando reconhecemos
Resquícios de um amigo
Na imagem do novo opressor...
Quando percebemos
A hipocrisia gritante de cobrar de nós
O que nunca fez
Ou não seria capaz de fazer,
Ainda que apoiado como não somos,
Munido de uma cadeira, um cargo
E um livro de ponto...
Lutamos contra os analógicos
Que mal organizam murais...
Ou mal formulam frases!
Ou que vomitam frases-feitas,
Oriundas de almanaques ou de tik-toks
E exigem de nós aulas mais atrativas.
Daquelas que nem com toda condescendência
Seriam capazes de produzir.
Lutamos contra pessoas que pararam de estudar
No dia exato em que passaram num concurso...
Lutamos contra os que se encastelam
Nas salas da direção
E de lá pensam que a escola
Faz parte de seus domínios
E por ela andam fantasiados de patrão.
Lutamos contra os compadrios,
Lutamos contra o isolamento
A que nos relegam se pedimos
Que reflitam, que repensem,
Que revertam decisões arbitrárias
E antidemocráticas e antipedagógicas...
Lutamos contra seres e forças que de fora da escola
Movem os fios invisíveis da performance
De seus títeres.
Lutamos o tempo todo.
Lutamos contra a maldade
Dos colegas que nos veem lutando
E secreta ou abertamente
Dizem: “lá vai o doido!”
Lutamos contra o jogo duro,
Lutamos contra o corpo mole,
Lutamos contra a falta de acolhimento,
Lutamos contra os que tornam
O nosso ambiente de trabalho
Tóxico e nocivo
E ainda têm coragem de cobrar a nossa empatia...
Lutamos porque não existe milagre!
Mesmo que os institutos e editoras
E empresas privadas prometam realizá-lo
E ganhem para isso rios do nosso dinheiro...
Nossa luta é pacífica,
Mas não é menos luta
Ou menos dramática por causa disso...
De tanto lutar, estamos exaustos,
Exauridos, enlutados...
Tão feridos, empobrecidos
E cansados, que dentre as coisas
Que queremos e não nos dão
E que não temos
Está mesmo um “muito obrigado”.
Percebem o tamanho do abismo?
Percebem agora
O tamanho do estrago?

quinta-feira, 23 de outubro de 2025

Poema: "Dos cemitérios verticais", de Erivelto Reis

 Dos cemitérios verticais

Erivelto Reis
Quando você passar na rua,
(Em qualquer rua)
É melhor reparar direito!
Não há mais uma escola pública...
Há um prédio público
Com uma gestão privada no meio.
Desde a merenda, à sala de leitura,
Passando pelos equipamentos,
Pelos livros didáticos, até a hora do recreio...
O que se come, o que se veste
Como são tratados
Os funcionários públicos
Ali lotados, sobreviventes...
Os terceirizados aterrorizados
Com os descontos no contracheque
Com a ausência de garantias trabalhistas
E o volume de trabalho crescente.
Os estatutários, desconfiados,
Tentando entender a repentina
Mudança de humor e de postura ética
Dos ex-colegas que viraram títeres-gestores
Mas que agem e se comportam
Com a desfaçatez autoritária dos donos e dos chefes.
Na escola pública, por enquanto,
Apenas o prédio, conteiner, depósito
É público de fato.
Já vimos esse filme com o petróleo,
com a energia, com as estradas,
com os aeroportos... até com a água...
Depois, em muito pouco tempo,
Não nos pertencerão nem os prédios,
Não sobrarão nem servidores públicos,
Nem isso mais ao menos...
Quem passar na rua
E olhar pra escola, pro colégio público
Vai estar vendo só o prédio
Verá um biscoito sem recheio,
Um automóvel sem estepe,
Um cemitério de soberanias,
Um esquife de cimento e esquecimento...
Um prédio público
Com a escola pública sendo privatizada,
Desmantelada...
Com sua função social e democrática
Sendo sepultada por dentro...

quarta-feira, 22 de outubro de 2025

Poema: "A dura lição do saeb", de Erivelto Reis

A dura lição do saeb

Erivelto Reis


Não é na Sorbonne

Suborne pro saeb

Saber o que todo mundo

Já sabe

Suborne pra o saeb esconder

O que todo mundo já sabe

Ofereça passeios, viagens,

Lanches - livros não servem!

Uma avalanche de propinas,

Gincanas para maquiar a nota

Se for pouco ou nenhum o aprendizado,

“Quem é que liga, quem se importa?”

Pra livrar a cara de quem não sabe,

Pra livrar a cara de quem não ensina,

Pra esconder que o aluno não frequenta,

Pra esconder que o aluno não respeita,

Pra esconder que o aluno não liga...

Enquanto quem denuncia esse horror

Só se prejudica...

Pra esconder que o governo, o diretor ou a família se ausentam

Se isentam, se inocentam, sobrecarregam

E culpabilizam quem trabalha na sala de aula

Superestimam quem veste a camisa

Não a da escola, mas a de sua confraria

Me diga o que você faria...

Quando quem em lugar de dirigir

Ignora a importância, a trajetória, a formação e assedia?!

E quem poderia te ajudar, se cala...

Por um lugar melhora na escala

Pra não sofrer na pele o que fazem contra você...

O governo sabe que nesse modelo não se consegue

Educar de verdade, educar pra autonomia

E não para a exclusão e servidão

O saeb sabe

Todo mundo sabe como termina:

Aprovação total numa canetada

Ou uma avalanche de assédio moral

Sob pretexto demagógico, inócuo e burocracional.

O aluno te olhando atravessado

E os colegas dizendo que você

É estranho, esquisito, excêntrico,

Esnobe e amargurado.

Há tantos discursos pra justificar...

A simulação do educar.

Não precisa questionário nem consulta

Basta ver um monte de gente adoecendo,

Desistindo da profissão,

Sofrendo sem pedir ajuda ou

Pedindo apoio e sendo ridicularizado e hostilizado...

“Não trabalhe para não sofrer

E se sofrer, faça o favor

De se acabar calado!”

A escola já sabe,

A vida não ensina!

Não é na Sorbonne...

sábado, 18 de outubro de 2025

Poema: "Cuspe", de Erivelto Reis

 

Não é a saliva escorrendo,
Não são os caninos à mostra,
Não é a desfaçatez
Nem o sarcasmo documentado.
Não é a instransigência,
Não são os capuzes e as tochas,
O segurança andando atrás de nós
Como se o mundo fosse uma grande loja,
Como se a educação fosse um grande varejo.
O cuspe não disfarça o nojo,
O cuspe não disfarça o medo,
O cuspe não disfarça o ódio.
Faz alvo da tez que lhe desagrada
Quando alguém fura a sua bolha,
Muda tudo, muda a regra do jogo...
Não é o Cérbero pensando ser São Pedro!
É a busca por uma justificativa
Indisfarçável...
A cascavel sem chocalho dando o bote
É o cuspe na cara da ordem
É o cuspe na alteridade
É o cuspe na legalidade
Não venham dizer depois
Que qualquer um dos pobres
e pretos e desapadrinhados
Não sabem os códigos tácitos, implícitos
Escritos nas paredes, nos corredores,
Nas fachadas e salas de aula
De certos tipos de miniversidades.
Todos nós sabemos os limites outros
Que nos são impostos e que teremos de transpor
Aceitar insulto como um favor,
Ameaças como avisos,
E humilhações como idiossincrasias
De discursos indiretos
De sujeitos ocultos e mal resolvidos...
Verdade é que encontramos
Os que nos compreendem e respeitam,
Mas... aqui e ali,
Criaturas horrendas nos espreitam.
Nos tratam como invasores
Que vieram andar nos seus brinquedos
Que vieram andar por seus domínios
Mas que se recusam a ir embora
No começo de um novo dia
Ou no fim de uma longa tarde.
Porque vemos que casa pode servir
Para construir um futuro
Mais digno, mais voltado para o coletivo...
Inspirados pela democracia e pela liberdade.

quinta-feira, 9 de outubro de 2025

Poema: "Shiuuu!!!", de Erivelto Reis

Shiuuu!!!
Erivelto Reis

A solidão,
a distância e o desprezo,
E tudo que transcende
A compreensão mínima
Da ética
Têm voz humana.
E se não fala, faz gestos,
Mímica
Mimetiza
Emula
Animais de sombra...
Zomba do sonho
Limpa o sangue na manga
Já ensopada de pus!
É um esgar gutural
Como se a tumba
Do submundo fosse aberta
E de lá não parasse nunca mais
De jorrar o caos.
A única coisa natural no mundo
não ética
tem voz humana...

Shiuuuu!!! 

Poema: "Reflexões sobre cupins", de Erivelto Reis

 Reflexões sobre cupins

Erivelto Reis
O cupim habita a casa,
O cupim sabota a casa,
O cupim é hipócrita:
Está na casa
Mas não gosta dos que estão
Na casa em outra função.
O cupim é um bicho
De asas temporárias,
Simpático apenas às traças,
Mas que pensa que se iguala às águias.
O cupim é sorrateiro
Parasita a estrutura,
o trabalho do hospedeiro...
Da toca onde sai,
Até a construir o vazio
No que antes dele era sólido
E depois dele só casca e ruína,
Quanto rancor!
De não ter casulo e de não ser
Borboleta, abelha, libélula
A latrina e o que nela deposita
É o que alimenta o seu organismo
A sua sina.
O cupim só tem ego se lhe emprestam uma cadeira,
Nem escrúpulo, nem vergonha, nem coerência
Cego, se lhe mostram o estrago que faz
Surdo, se lhe pedem que pare,
Só para quando a casa desaba,
Quando os moradores se evadem,
Cupim é bicho covarde!
Tão insaciável quanto preguiçoso...
Ambicioso ao ócio,
Avesso ao esforço,
Que anda solto por aí
Fazendo estrago em toda parte.

quarta-feira, 1 de outubro de 2025

Poema: "Os bem-aventurados", de Erivelto Reis

 Os Bem-aventurados 

Erivelto Reis

Os que os preguiçosos admiram
E os que os maldosos ignoram
Bem-aventurados os que os criativos conhecem
E o que as criaturas imitam
Bem-aventurados os que tendo o que dizer, ouvem
E os que quando falam encantam
Bem-aventurados os que com poder ponderam
E os que expõem o imponderável dos déspotas
Bem-aventurados os amáveis,
Os sensíveis e os fraternos
Bem-aventurados os que falam a verdade
Os éticos, os que não mandam recado...
Bem-aventurados.
Os poetas, os pacíficos,
Os que educam,
Os que têm alma intensa,
Propensa aos sustos
Que a emoção provoca.

quarta-feira, 6 de agosto de 2025

Poema: "Soft, ué?!", de Erivelto Reis

Soft, ué?!

Erivelto Reis

 

O burocrata é uma máquina

Que não dá defeito

(Ela é o defeito!)

Uma ia sem i

Só artificial mesmo...

O burocrata parece

Feito de pedra

Mas é feito de gosma.

Rosna com o formulário

Desenterrado do fundo da gaveta,

Arrancado do armário

Pra esfregar na sua cara

(Enquanto você faz uma careta).

Ele ama que você se sinta inseguro

Ele ama ver você precarizado...

Tipo um cão que ladra

E que morde o subordinado,

Enquanto abana o rabo

Para os seus benfeitores.

Um burocrata é um panaca

Que corta a fita da obra alheia

No dia da inauguração.

Tem fetiches de fazer

Orgias com memorandos

E portarias.

É um qualquer...

Um erro de design e de hardware.

De pedra é só o seu coração...

E de lama, que arremessa

Contra qualquer reputação.

Quer a sua educação, o seu acolhimento

Enquanto assedia e faz você passar

Pelos seus piores momentos.

O burocrata lê os números

Com a precisão com que

As videntes leem mãos.

O burocrata é uma máquina

Que não dá defeito...

Efeito colateral do sistema,

O burocrata é máquina:

É de quebrar e quebra

Cérebro de lata,

Software de merda.

segunda-feira, 28 de julho de 2025

Poema: "Eutanásia", de Erivelto Reis

 Eutanásia

Erivelto Reis

 

Fantasiar amar

(Como um fantasma)

Como um conto

Uma fábula, uma falácia

Um discurso,

Sem ações, só em palavras!

Em emulações várias.

Como falsário a imitar um Rembrandt,

Um conselho de mãe,

Um Portinari,

Uma obra da Frida Khalo,

Um fragmento de Gabo,

Um anticlímax de Machado,

Um texto de Rubem Braga...

Um estelionato emocional, passional,

Simular amar, em perene heresia,

Piromania, pirotecnia...

Para desconstruir o outro

Para demolir a casa...

Perpetrar o amor a outrem

Como se praticasse eutanásia.

sábado, 14 de junho de 2025

Poema: "Geo(i)lógico", de Erivelto Reis

 Geo(i)lógico

Erivelto Reis

O Rio de Janeiro

É um oásis que brotou nos trópicos

Um estado equinóstico

Equatorial

Um exótico manancial

Um paradoxo tipicamente caótico

Entre paisagem celestial

Ecumênica

E uma geografia surreal

É um arquipélago antimonótono

De falésias favélicas

Subúrbios rurais

Periferias abissais

Permeadas por histórias

E culturas por todos os lados

É um quadro de Dali

Assinado por Picasso

O Rio de Janeiro

Permanentemente geo(i)lógico

É uma miragem

Que nasceu nos trópicos

Da qual estamos mais distantes

Quanto mais nos sentimos próximos.

domingo, 8 de junho de 2025

Poema: "No sense", de Erivelto Reis

 No sense

Erivelto Reis

 

Não é nem ao menos o medo de morrer...

É medo de não ter o que dizer,

Se eu tiver que justificar

O momento que atalhei,

Que me perdi

Ou o quanto demorei pra

Retomar o caminho.

É um medo da falta que vou fazer

Pra gente que eu nem sabia

Que ia sentir minha falta...

E o medo de não fazer falta alguma

Pra gente que tinha um apê, um airbnb, bem aqui

No lugar que parou de bater.

É medo de ser numa sexta,

É medo de ser na data de um aniversário,

No dia de uma formatura,

No dia de alguém importante

Para um grupo social mais relevante.

Não é medo de morrer propriamente,

É medo de não poder mais cuidar do quintal,

É medo do outro espaço

Ser um deserto espiritual,

Ou um oásis para o qual

Eu não tenha passe vip ou preferencial.

Ou pior:

Ser um céu inalcansável,

Um não-céu no sense,

Um areal de escombros,

Um lodaçal de pessimismos,

Cheio de pensamentos intrusivos,

Remorsos terrenos...

E de coisas que continuem me fazendo mal.

Não é medo de morrer exatamente

É medo do extrato com saldo negativo

De uma vida inexpressiva e banal!

Uma desvida caricatural...

sábado, 31 de maio de 2025

Poema: "Sem rumo", de Erivelto Reis

 Sem curso

Erivelto Reis
Preguiça é um rio sem curso
Estupidez é um rio sem curso
Desespero é um rio sem curso
Vício é um rio sem curso
Pecado é um rio sem curso
Mas o que é o pecado
Quando o rio desencontra o oceano?
Saudade é um rio sem curso
Privilégio é um rio sem curso
Nepotismo é um rio sem curso
Misoginia é um rio sem curso
Ignorância é um rio sem curso
Violência é um rio sem curso
A inveja é um rio sem curso
Tudo o que mata e não é mata
Tudo que é um rio
Que não mata a sede
Tudo que é vivo e não tem vida
É covarde e é defunto
É um rio sem curso...
Tudo o que transborda, deforma,
E não transforma
É uma invasão bárbara
De espaço, tempo e forma
Vale pra pessoa, vale pra estátua
Vale pra autor, ideia e obra.
Tem gente que aceita, acata
Tem gente que se rebela,
Não se conforma!
Mas aí a vida não é mais
Como ela era...

sábado, 17 de maio de 2025

Poema: "Reels", de Erivelto Reis

Reels

Erivelto Reis

Lá em casa colocamos

Os cachorros pra dormir na sala

Lá em casa respeitamos e debochamos

Da hierarquia das árvores genealógicas

Mas criamos lendas a respeito delas

Lá em casa embaralhamos

Os discursos na mesa de jantar

Catar piolho era uma forma de carinho

E chineladas, uma forma de educar

Lá em casa todo mundo é santo

Desses de não ocupar lugar

Em andor em capela e em altar

Lá em casa sempre falta espaço

E todos os traumas são silenciosos

Lá em casa temos medo

De perder-se qualquer um de nós

Mesmo o mais preguiçoso,

Mesmo o mais avarento

Lá em casa quem sai não volta

Lá em casa quem está não sai

Vira retrato na parede,

Foto esquecida num álbum

Olhar de mãe, piada ruim de pai

Varremos as mágoas pra debaixo do tapete

Que serve de cama e canil pro cachorro

Exemplo de pedagogia

Tácita, não escrita e soberana

De um código familiar

 

Que transforma ao mesmo tempo

Toda reunião em festa

Todo momento em solene

Desses que viram post, reels, memória e meme

sexta-feira, 28 de março de 2025

Poema: "Crocodilo", de Erivelto Reis

Crocodilo

Erivelto Reis

 

Porque professor,

Porque proletário,

Porque contratado,

Porque temporário,

Intimidado,

Desvalorizado,

Precarizado...

Porque inconformado,

Porque explorado,

Porque assalariado,

Assediado,

Silenciado...

É que, quando eu posso,

Eu ponho os pingos nos is!

Eu boto o dedo na ferida,

Eu chuto o balde,

Eu soletro os nomes,

Eu parto pro debate,

Eu furo a panela da intriga.

Porque sei onde o problema habita,

Porque sei do oco da marmita,

Porque sei do rombo do consignado,

Porque sei da extorsão do banco,

É que não caio na lábia do sacerdócio.

É que não vou na onda do mártir,

É que não vou bancar o santo.

Porque sei o quanto odeiam meu descanso,

É que não vou baixar a crista

Quando alguém vier cantar de galo,

Quando um raso louvar o atraso,

O proselitismo, o niilismo,

E achar que é prosaico pisar no meu calo.

Porque professor eu sei que não sei de tudo,

Mas sei reconhecer o que é precário,

O que é precarizar com rubricas e semântica,

Porque sinto na pele o peso dessa arrogância.

Percebo o que é covardia, o que é absurdo.

Sei que adoram precedentes,

Realocação de verbas e ausência de licitações,

Crachás e broches hierarquizantes,

Enquanto flanam longe do chão da escola,

Ciosos de seus cargos e de suas comissões.

E enxergo a falha épica em seus discursos,

As suas lábias e as de seus pupilos,

Enquanto esperam que eu cale...

Enquanto esperam que eu seque

As suas lágrimas de crocodilo.

Eis o ápice de seu cinismo.

 

 

 

 

 


segunda-feira, 3 de março de 2025

Crônica: "Uma indústria sexista e etarista", crônica de Erivelto Reis

Uma indústria sexista e etarista

Erivelto Reis

    A Academia norte-americana de cinema que já vem demonstrando grande desconexão com o reconhecimento do público que prestigia os chamados blockbusters aos quais ela, historicamente, não premia e nem parece valorizar real e, principalmente, a partir dos anos 2000. Com a categoria Terror/horror tem uma ruptura inexplicável e incompreensível. E ontem deu mais um grande sinal de como está atrasada e antiquada ao expor para o mundo que o etarismo é uma estratégia política de sua sobrevivência como indústria, em uma tentativa patética absolutamente desprezível de produzir ativos econômicos visando às produções futuras, à continuidade do mercado.

    O QUE MANTÉM O MERCADO É O TALENTO. PONTO. Além disso, o sexismo Hollywoodiano - HOLLYWIDIOTA - é vergonhoso. E falta ainda mais ME TOO para evitar que certas figuras asquerosas continuem decidindo os caminhos da indústria e a premiação de ativos econômicos potenciais para os investidores e figurões dos estúdios, em detrimento de talentos reais e de suas atuações brilhantes a cada novo filme. A credibilidade da premiação e seu significado simbólico, historicamente construídos, ficam comprometidos. E um prêmio indevido injusto nessas condições é um ato preconceituoso e hostil. Artistas, profissionais da indústria e o grande público se sentem desvalorizados e manipulados quando isso ocorre. A isso somam-se a histórica xenofobia norte-americana, o fato de que há cupins gigantescos devorando as bases de sua democracia em pleno século XXI e a maneira cruel como o mercado audiovisual norte-americano tem se preparado para expropriar os artistas de seus talentos individuais, de sua voz e imagem intransferíveis e replicá-los à exaustão - às custas de contratos leoninos -, em obras pretensamente ficcionais e/ou de uso político, através de recursos de inteligência artificial.

    Assim, entendo que Demi Moore e Fernanda Torres foram roubadas para que Madson gerasse expectativa na indústria pelos próximos 10 anos e filmes mega populares como Wicked (ou Barbie, em premiações anteriores) não têm reconhecimento da própria indústria à altura do trabalho que realizam em favor do mercado, da formação de público. Pior que tudo isso é ver que grandes filmes, grandes atuações, grandes artistas em todos os segmentos nunca vão alcançar a chancela do reconhecimento que merecem porque a academia de cinema norte-americana conta ainda com votantes sexistas, fetichistas, etaristas e gananciosos a serviço do lucro e de vinganças políticas e particulares.

    Ou a indústria renova seus critérios, instaura um sistema permanente de compliance e reconhece como tem errado ao longo de sua história em muitas ocasiões ou continuaremos testemunhando injustiças, violências políticas indesculpáveis, preconceitos dos mais diversos e produções que misturam propaganda e memes inorgânicos.

domingo, 2 de março de 2025

Crônica: "Ainda Estou Aqui, Fernanda Torres e alguns Detalhes", de Erivelto Reis

 Ainda Estou Aqui, Fernanda Torres e alguns Detalhes
Erivelto Reis

    Fernanda Torres fez um trabalho poucas vezes visto na história do cinema mundial. Um método de atuação pela contenção absoluta. Um trabalho próximo - e entendo, superior- ao de Jodie Foster em Nell ou Juliane Moore em Ensaio sobre a cegueira. Torcendo muito. Mas a história já está sendo feita.
    Há outras muitas camadas de qualidade superior no filme Ainda Estou Aqui. A memória de Rubens Paiva, a luta de Eunice Paiva e seu legado pela democracia. A oportunidade de avisar claramente a todas as pessoas que os perversos detratores de nossa democracia mantêm uma sede de crueldade e de poder represada desde 1988. E muitos dos torturadores e seus hediondos admiradores ainda estão impunes e entre nós, seja pela herança do horror e da dor que nos impuseram, seja por seus asseclas, que tanto anseiam por emular aquele tempo de medo, supressão da arte, da liberdade, da democracia e dos direitos individuais e esperam promover a tortura e a ditadura em pleno século XXI em nosso país.
    Evidentemente, o texto potente de Marcelo Rubens Paiva, que transcende a questão das categorias de gênero, especialmente considerando-se autobiografia e autoficção é uma mola propulsora da narrativa.
    Destaco ainda o uso da trilha sonora como personagem - como bem percebeu minha querida amiga Simone Batista, a atuação de Selton Mello e o roteiro urdido como palimpsesto do texto do qual se origina e de nossa própria história. Fernanda Torres será para sempre a imagem de Eunice e desse cinema potente e vertiginoso produzido em nosso país. Um patrimônio de nossa arte, um exemplo das nossas maiores conquistas em todos os segmentos, um marco do talento de nossa gente.
    É preciso comentar que interpretação fantástica de Erasmo Carlos para uma composição com Roberto Carlos, lá dos idos dos anos 60/70 é uma chave poderosa de acesso à atmosfera daquela época. Erasmo Carlos é um dos nossos maiores compositores e É preciso ter cuidado,meu amigo dá prova disso mais uma vez. No entanto, o que sistematicamente se tem apagado desde o estouro da obra cinematográfica Ainda estou aqui é a possibilidade de se reler no acervo da dupla Roberto e Erasmo uma intencionalidade e ações artísticas e políticas de crítica e denúncia social, no âmbito da composição e da interpretação de Roberto Carlos, especialmente nos discos de 1969 e de 1971, mas não somente nesses discos.
    Não vou entrar no mérito aqui nesse espaço. Mas convido a quem me lê a ouvir os discos. No caso de Erasmo, o Tremendão, que sempre manteve a relação com o Rock e, consequentemente, com uma postura de contestação social. Essa rebeldia e esse posicionamento eram mais aparentes e visíveis. No entanto, seja pelo gênero romântico assumido por Roberto Carlos desde o álbum O inimitável de 1968, seja por leitura descontextualizada de uma foto com uma "condecoração" forçada - para uso e sequestro da imagem do artista pelo governo militar e pela existência de um memorando militar sobre autorização para um evento com uma menção particular ao gosto pelo artista, e mais nenhuma prova real, criou-se uma fantasiosa justificativa, (uma lenda urbana) para desdenhar, acusar e depreciar a obra de Roberto e se questionar, sem analisar ou conhecer a fundo o alcance de suas obras, o seu posicionamento ou a sua maneira de lutar contra aquele sistema. A isso juntemos alguns egos feridos pelas recusas do artista...
    Caetano, Chico, Gal, Nara, Elis, Tom Jobim, Gil e até mesmo Vandré reconheceram o trabalho, o "posicionamento" e a importância de Roberto. E a quantos e quantas ele ajudou em segredo durante aquele período terrível. Felizmente, sempre é tempo de rever posicionamentos e que bom que a arte nos ajuda, que Ainda estou aqui vem recolocar muitas coisas nas prateleiras certas. Ou pelo menos em prateleiras diferentes.
    O post é pra falar do filme, pra exaltar o cinema brasileiro, pra falar de nossa história e de nossa cultura, pra declarar minha admiração e gratidão pelo trabalho de Fernanda Torres, que independentemente do que venha a ocorrer no Oscar hoje já nos encheu de orgulho e esperança. Ainda estou aqui confirma que há muitos detalhes não tão pequenos que são coisas muito grandes pra esquecer.

Poema: "Qualquer Pessoa", de Erivelto Reis

 Qualquer Pessoa

Erivelto Reis
Fizeram em minha alma
Uma loja de tédios
Permanentemente em promoção.
Passantes testam os produtos
São frágeis e se quebram
Em estrondo e depressão.
Que lugar mais longe
Para inaugurar-se uma loja de tédios
Longe e on-line
Quando estou sem conexão.
Há tédios exclusivos
Que somente os riscos podem pagar...
Há tédios populares
Vendidos aos lotes,
Principalmente nas feiras de domingo à tarde.
Uma loja de tédio é uma franquia
E eu sofria sozinho, preocupado,
E nem sabia que ninguém falava disso,
Porque todo mundo tinha.
Fizeram uma loja de tédios em minha alma
E o aluguel do ponto é pago à prestação.
No carnaval não fecha o ponto...
E no Natal também não.
Não há preço que pague pelos tédios
Que não vendo, vejo
Que sem ouvir, tanto ouço
Que tateiam em minha pele
E que eu sinto tanto enquanto choro...
Uma loja de tédio:
Um pouco picadeiro, um pouco clausura,
Um pouco ribalta.
Tem tédio para tudo quanto é desgosto
E quanto mais cura, menos remédio, mais procura,
Mais tédio!
Daqueles que dão em estátua...

quinta-feira, 6 de fevereiro de 2025

Poema: "Sulfite", de Erivelto Reis

 

Sulfite

Erivelto Reis

 

Uma educação

Para parecer Instagramável

Que não se mostre instável

Com resultados replicáveis

Em escala exponencial

Uma educação de elite só na tela

Cinematográfica

Que dê a impressão de que a dificuldade

Seja improvável

E de que seu fracasso seja só um caso isolado

Uma educação viral

Um produto sem contraindicação

Que custe bem caro

Mas que não demande investimento

No salário de quem faz o trabalho

E que fique bem na campanha

Da internet e da televisão

Que venda como água em um dia de verão

Uma educação que negue

Que a novidade só no papel existe

Uma educação que pareça ser de grife.

Que não cause melindre

Que saia no post, no tuíte e no jornal

Que negue ou que confirme

Conforme o print, sulfite

O quanto possa ser

Uma educação tiktoker,

Só de enfeite,

Super fake, superfície

Super prejudicial.