CONDOMÍNIO BRASIL
Erivelto Reis
É preciso admitir que certas pessoas estão transgredindo
todos os limites de sua própria moral e ética em nome de defender o
indefensável.
Eu, pessoalmente, conheço pessoas agradabilíssimas,
trabalhadoras, corretas, divertidas, astutas, com pensamento ágil e formação
cultural de razoável para adiante (em termos de pluralidade e repertório) que,
em nome de não sei que princípios, indetectáveis em seu histórico pessoal, em
sua trajetória de vida, em favor de referendar atos tão horrendamente abjetos,
desumanos e ilógicos do atual governo, têm se associado – ainda quando
pretensamente de forma indireta o que as consideram inócuas e sem relação –, a
ideias completamente perversas contra o país, as questões humanas mais básicas
e elementares como o direito à justiça, à democracia e ao respeito à
integridade da mulher, ao credo, à cor da pele, a não-violência, por exemplo.
Sabe-se que há os radicais, os extremistas (radicais que
extrapolam os limites legais de suas convicções, do tipo que arrancam cruzes
simbólicas na areia diante de um pai enlutado e que em nada em seu protesto
silencioso oferece de risco ao agressor), os teleguiados, os que sofreram
alguma espécie de condicionamento psico-dogmático-social, os relativistas, os
omissos e “isentões”. Cada um dos estereótipos assinala características bem
particulares que se coadunam em universos paralelos que se sobrepõem e se
entrechocam em interações virtuais e pessoais com seu peso e sua medida, seu “mel”
e seu “fel”.
Não gostar do que quer que seja não deveria legitimar o
desrespeito, não compreender não deveria ter como efeito colateral imediato a
ameaça e a injúria. Quem cometeu um crime, se o cometeu deveria ser julgado com
idoneidade. Se uma emissora, site, jornal me agridem com sua linha editorial em
meus princípios ou convicções, estejam certo, não terão minha audiência. Se
alguma empresa apoia práticas que não aceito não poderei ser seu cliente.
Em relação às práticas de ações políticas, deve-se observar
que se quem está sob os holofotes mexe nas peças do tabuleiro em seu próprio
benefício, se os juízes da partida concordam em alterar regras, condenar sem
provas, manipular e transgredir em nome de favorecimentos sejam pessoais ou a
terceiros, alguma coisa de muito séria e errada está acontecendo durante a
partida. Que tal discutir se estão comprando a torcida, antigos e ou prováveis adversários,
os legisladores, e propagando mentiras massivamente via computadores, líderes
reliodiosos, ou verbas publicitárias... veja a que ponto se chega.
Pensemos: qual condômino aceitaria como síndico, um morador
que já se tivesse declarado a favor de um torturador, tivesse planejado um
atentado à bomba, tivesse sido expulso de sua corporação profissional, tivesse
exercido atividade profissional subsequente durante quase trinta anos sem
nenhuma contribuição relevante em sua área; tivesse histórico de práticas
misóginas, machistas, violentas e intimidadoras; tivesse ligações muito
próximas com pessoas de conduta no mínimo questionável em relação a grupos e
práticas paramilitares? E é só o começo da lista.
Alguém poderia argumentar que foi escolha dos moradores. Tudo
bem, passamos às consequências da escolha. Deveria fazer-se uma gestão para
todos os condôminos, legítima, transparente, responsável, conciliatória, de
diálogo, de respeito, de moderação, de realizações e avanços. Mas não foi
assim.
Sobre um morador, espalhou-se, sem provas, que tratava-se de corrupto;
sobre outra, que não tinha moral e honra; sobre um terceiro, escreveu em todas
as paredes do prédio que era doutrinador e não mereceria o emprego que ocupava;
ironizou, debochou e espalhou fake news
sobre as universidades públicas onde diversos
moradores se formaram.
Para ajudar na administração do condomínio em lugar de
especialistas convidou comparsas. Onde precisaria de um pedreiro, chamou um
militar; onde precisaria de um pintor, chamou um militar; onde havia
produtividade e competência, plantou espiões e detratores. Onde deveria haver
um porteiro, colocou um seu amigo, seu confidente ou indicado por seu guru. Coagiu,
intimidou, demitiu, desgraçou.
Escondeu quanto e como e onde gastava. Xingou, ameaçou,
incitou e mentiu.
Quando veio uma crise sanitária mundial, muitos prédios bem
mais antigos e modernos se resguardaram e se protegeram por ações coordenadas
diretamente por seus síndicos e síndicas e obedecidas por todos os moradores. No
condomínio Brasil, em lugar de medidas preventivas sérias e protetivas aos
moradores, o síndico pensou que se tratava de virose sem importância; preocupou-se
apenas em como os fornecedores de material ao condomínio poderiam manter seus
lucros durante a crise.
Talvez a comparação com um síndico, condomínio etc., nem seja
das mais felizes ou criativas porquanto, na realidade, no condomínio real desse
síndico, escutas, requisição extraoficial de gravações, entrada e saída, com
frequência de visitante, de pessoas, no mínimo suspeitas, antes e depois de
episódios trágicos e dramáticos já se configure como uma realidade preocupante
e não como uma alegoria mal escolhida.
Os brasileiros erraram muito. Pelo menos os condôminos que
escolheram esse síndico. Erraram também os que não votaram na reunião de
condomínio que o elegeu. A ata invisível da consciência acusa.
Outros erraram em suas escolhas em outros tempos e talvez,
por diversas razões, continuarão errando. Mas é preciso autocrítica e não
comparações esdrúxulas e sofismos. Não estou afirmando que, como outros já
escolheram errado, tudo bem. Não está. Não estava e não estará. A escolha de um
apoiador confesso da ditadura e de um torturador diz muito sobre uma face desse
Brasil que se configurou e se expôs a
partir da segunda década do século XXI. Mesmo após o final do mandato do
síndico, por renúncia, expulsão, demissão, conclusão incompetente do mandato, o
que seja, ainda teremos que lidar com as consequências e com os que permitiram
a sua causa por décadas.
Muitas pessoas (insisto em ressaltar quão adoráveis as acho)
absolutamente queridas e agradáveis em sua trajetória, no convívio diário,
pessoal, porém, por razões as mais diversas, cegas ao horror que esse governo
representa e, diversas situações, seus apoiadores, divulgadores e defensores do
indefensável.
Quem roubou, corrompeu, desviou, fraudou etc. deve ter
direito a um julgamento idôneo, justo e, em sendo legalmente condenado, de
acordo com os princípios universais que norteiam o direito, a justiça, a
democracia e a legalidade, que pague, que cumpra sua pena. Linchamento virtual
sem prova, enquanto, seu líder, ou o governante de nosso país, exala esgoto,
violência e ameaças pela boca, em meio ao desemprego, à morte de milhares e ao
desmonte progressivo de áreas como saúde, cultura e educação é demais até
quando vem de pessoas a quem admiramos ou nutrimos certo apreço e consideração.
Se em um prédio, um condômino, votou em um síndico que só faz
destruir o patrimônio enquanto alega proteger o imóvel, eu o alerto, eu o chamo
ao diálogo e, diante de resposta evasiva ou relativista ou então de ameaças,
insensibilidade, histeria e extremismos, eu me afasto e lamento.
Em se tratando de meu país, eu luto. Com profunda convicção
na mudança, porém com medo, muito medo de que, ao final do processo, o síndico
já tenha vendido o que não lhe pertença: a nossa liberdade, o prédio ou os dois.
Na ordem do que conseguir negociar primeiro.
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