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Poeta - escritor - cronista - produtor cultural. Professor de Português e Literaturas. Especialista em Estudos Literários pela FEUC. Especialista em Literaturas Portuguesa e Africanas pela Faculdade de Letras da UFRJ. Mestre e Doutor em Literatura Portuguesa pela UFRJ. Nascido em Goiás, na cidade de Rio Verde. Casado. Pai de três filhos.

domingo, 21 de junho de 2020

Crônica: "Condomínio Brasil", de Erivelto Reis


CONDOMÍNIO BRASIL
Erivelto Reis

É preciso admitir que certas pessoas estão transgredindo todos os limites de sua própria moral e ética em nome de defender o indefensável.
Eu, pessoalmente, conheço pessoas agradabilíssimas, trabalhadoras, corretas, divertidas, astutas, com pensamento ágil e formação cultural de razoável para adiante (em termos de pluralidade e repertório) que, em nome de não sei que princípios, indetectáveis em seu histórico pessoal, em sua trajetória de vida, em favor de referendar atos tão horrendamente abjetos, desumanos e ilógicos do atual governo, têm se associado – ainda quando pretensamente de forma indireta o que as consideram inócuas e sem relação –, a ideias completamente perversas contra o país, as questões humanas mais básicas e elementares como o direito à justiça, à democracia e ao respeito à integridade da mulher, ao credo, à cor da pele, a não-violência, por exemplo.
Sabe-se que há os radicais, os extremistas (radicais que extrapolam os limites legais de suas convicções, do tipo que arrancam cruzes simbólicas na areia diante de um pai enlutado e que em nada em seu protesto silencioso oferece de risco ao agressor), os teleguiados, os que sofreram alguma espécie de condicionamento psico-dogmático-social, os relativistas, os omissos e “isentões”. Cada um dos estereótipos assinala características bem particulares que se coadunam em universos paralelos que se sobrepõem e se entrechocam em interações virtuais e pessoais com seu peso e sua medida, seu “mel” e seu “fel”.   
Não gostar do que quer que seja não deveria legitimar o desrespeito, não compreender não deveria ter como efeito colateral imediato a ameaça e a injúria. Quem cometeu um crime, se o cometeu deveria ser julgado com idoneidade. Se uma emissora, site, jornal me agridem com sua linha editorial em meus princípios ou convicções, estejam certo, não terão minha audiência. Se alguma empresa apoia práticas que não aceito não poderei ser seu cliente.
Em relação às práticas de ações políticas, deve-se observar que se quem está sob os holofotes mexe nas peças do tabuleiro em seu próprio benefício, se os juízes da partida concordam em alterar regras, condenar sem provas, manipular e transgredir em nome de favorecimentos sejam pessoais ou a terceiros, alguma coisa de muito séria e errada está acontecendo durante a partida. Que tal discutir se estão comprando a torcida, antigos e ou prováveis adversários, os legisladores, e propagando mentiras massivamente via computadores, líderes reliodiosos, ou verbas publicitárias... veja a que ponto se chega.
Pensemos: qual condômino aceitaria como síndico, um morador que já se tivesse declarado a favor de um torturador, tivesse planejado um atentado à bomba, tivesse sido expulso de sua corporação profissional, tivesse exercido atividade profissional subsequente durante quase trinta anos sem nenhuma contribuição relevante em sua área; tivesse histórico de práticas misóginas, machistas, violentas e intimidadoras; tivesse ligações muito próximas com pessoas de conduta no mínimo questionável em relação a grupos e práticas paramilitares? E é só o começo da lista.
Alguém poderia argumentar que foi escolha dos moradores. Tudo bem, passamos às consequências da escolha. Deveria fazer-se uma gestão para todos os condôminos, legítima, transparente, responsável, conciliatória, de diálogo, de respeito, de moderação, de realizações e avanços. Mas não foi assim.
Sobre um morador, espalhou-se, sem provas, que tratava-se de corrupto; sobre outra, que não tinha moral e honra; sobre um terceiro, escreveu em todas as paredes do prédio que era doutrinador e não mereceria o emprego que ocupava; ironizou, debochou e espalhou fake news sobre as universidades públicas  onde diversos moradores se formaram.
Para ajudar na administração do condomínio em lugar de especialistas convidou comparsas. Onde precisaria de um pedreiro, chamou um militar; onde precisaria de um pintor, chamou um militar; onde havia produtividade e competência, plantou espiões e detratores. Onde deveria haver um porteiro, colocou um seu amigo, seu confidente ou indicado por seu guru. Coagiu, intimidou, demitiu, desgraçou.
Escondeu quanto e como e onde gastava. Xingou, ameaçou, incitou e mentiu.
Quando veio uma crise sanitária mundial, muitos prédios bem mais antigos e modernos se resguardaram e se protegeram por ações coordenadas diretamente por seus síndicos e síndicas e obedecidas por todos os moradores. No condomínio Brasil, em lugar de medidas preventivas sérias e protetivas aos moradores, o síndico pensou que se tratava de virose sem importância; preocupou-se apenas em como os fornecedores de material ao condomínio poderiam manter seus lucros durante a crise.
Talvez a comparação com um síndico, condomínio etc., nem seja das mais felizes ou criativas porquanto, na realidade, no condomínio real desse síndico, escutas, requisição extraoficial de gravações, entrada e saída, com frequência de visitante, de pessoas, no mínimo suspeitas, antes e depois de episódios trágicos e dramáticos já se configure como uma realidade preocupante e não como  uma alegoria mal escolhida.
Os brasileiros erraram muito. Pelo menos os condôminos que escolheram esse síndico. Erraram também os que não votaram na reunião de condomínio que o elegeu. A ata invisível da consciência acusa.
Outros erraram em suas escolhas em outros tempos e talvez, por diversas razões, continuarão errando. Mas é preciso autocrítica e não comparações esdrúxulas e sofismos. Não estou afirmando que, como outros já escolheram errado, tudo bem. Não está. Não estava e não estará. A escolha de um apoiador confesso da ditadura e de um torturador diz muito sobre uma face desse Brasil  que se configurou e se expôs a partir da segunda década do século XXI. Mesmo após o final do mandato do síndico, por renúncia, expulsão, demissão, conclusão incompetente do mandato, o que seja, ainda teremos que lidar com as consequências e com os que permitiram a sua causa por décadas.
Muitas pessoas (insisto em ressaltar quão adoráveis as acho) absolutamente queridas e agradáveis em sua trajetória, no convívio diário, pessoal, porém, por razões as mais diversas, cegas ao horror que esse governo representa e, diversas situações, seus apoiadores, divulgadores e defensores do indefensável.
Quem roubou, corrompeu, desviou, fraudou etc. deve ter direito a um julgamento idôneo, justo e, em sendo legalmente condenado, de acordo com os princípios universais que norteiam o direito, a justiça, a democracia e a legalidade, que pague, que cumpra sua pena. Linchamento virtual sem prova, enquanto, seu líder, ou o governante de nosso país, exala esgoto, violência e ameaças pela boca, em meio ao desemprego, à morte de milhares e ao desmonte progressivo de áreas como saúde, cultura e educação é demais até quando vem de pessoas a quem admiramos ou nutrimos certo apreço e consideração.
Se em um prédio, um condômino, votou em um síndico que só faz destruir o patrimônio enquanto alega proteger o imóvel, eu o alerto, eu o chamo ao diálogo e, diante de resposta evasiva ou relativista ou então de ameaças, insensibilidade, histeria e extremismos, eu me afasto e lamento.
Em se tratando de meu país, eu luto. Com profunda convicção na mudança, porém com medo, muito medo de que, ao final do processo, o síndico já tenha vendido o que não lhe pertença: a nossa liberdade, o prédio ou os dois. Na ordem do que conseguir negociar primeiro.

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