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Poeta - escritor - cronista - produtor cultural. Professor de Português e Literaturas. Especialista em Estudos Literários pela FEUC. Especialista em Literaturas Portuguesa e Africanas pela Faculdade de Letras da UFRJ. Mestre e Doutor em Literatura Portuguesa pela UFRJ. Nascido em Goiás, na cidade de Rio Verde. Casado. Pai de três filhos.

sexta-feira, 26 de junho de 2020

Crônica: "Jardim das saudades", de Erivelto Reis


Jardim das Saudades
Erivelto Reis

Por que fariam um ponto de ônibus em frente a uma capela funerária? Porque ela fica em frente a um cemitério. Porque essa será a vez mais triste que se embarca ou desembarca-se do coletivo?! Porque todos os caminhos nos conduzem a esse momento, se não ao cemitério, a um silêncio à capela?!
                Escuto um mistura de discursos. Meu currículo numa pasta sob o braço, preso ao corpo como minha alma, a fome, a sede e alguma esperança. No bar, bem próximo há uma mesa de sinuca. 20 fichas de sinuca e 4 eloquentes Itaipavas, meio quentes ou quase geladas, são suficientes para declarar um gato contra um dos que estão no bar disputando a partida. A bola branca suicidou-se algumas vezes. Seria essa a relação entre sinuca de bico, suicídio, a morte e os cemitérios? Qual será a próxima tacada do destino? A alegria de quem vence na ardósia sob o pano verde da sinuca, naquele estabelecimento, tão comercial como o cemitério ou a capela, contrasta com a tristeza dos que presenciam o corpo inerte, rodeado de murtas sob um véu branco de filó e remorsos.
                Uma TV afixada à parede sobre o freezer da Brahma, que serve de abrigo aos quibes que serão fritos e aos ovos cozidos que enfeitarão o balcão, na manhã do outro dia, transmite uma partida de futebol entre clubes de futebol de outro país. Vejo, enquanto aguardo o ônibus, um emprego e dias melhores, uma movimentação de camisas verdes e amarelas em torno da capela – jave, jeová, jiré, jair, não sei a que deus adoram, mas suas máscaras não estão bem posicionadas, e seus gestos não são de comiseração e lamento. Lamento por eles. Suas preces misturam-se a cantos tão desafinados, a lágrimas contidas. Quem perde a vida e quem perde o emprego está morto para o mercado e, às vezes, até para a própria família. Ouço palavras de ordem.  Exortações políticas à morte e exortações sentimentais a um político.
Sobre o morto sempre se fala bem, em surdina e à boca pequena, nessas ocasiões, como era o modo de falar-se mal dos vivos, antes das redes sociais. Meu ônibus está atrasado e eu também. Era pra eu ter conseguido esse emprego em março. Vim a pé de uma escola a quatro quarteirões e agora parei nesse ponto pra esperar condução para a próxima entrevista. Será que tem banheiro nesse bar? Na capela eu sei que tem. Pois nela foi velado meu pai. Eu não estava lá. Contaram-me que foi muita gente. Nunca souberam, de fato, como foi pra mim. Quando fui visitar a cova, ganhei um aviso contra os assaltos nas vielas do cemitério. Memorizei a localização para nunca mais passar por ali: foi fácil, árvore frondosa, alameda perto do muro, no fim definitivo de qualquer infância.
                Há um jeito silencioso de consolarmos as pessoas por dores pelas quais já passamos. Abaixam-se os olhos, curva-se a cabeça. Boca não diz palavra, mas pensamento corre a galope para o reino do “e se... ” e do “mas por quê?!...”. É como se a dor do luto não se modulasse ou se amplificasse de pessoa a pessoa. A gente consola o outro com o medo da dor que não sofreu ou com a lembrança da dor que já teve e que não é mais como era no exato instante em que se fala dela.
Na capela, todos agora se posicionam para erguer o caixão do centro de sua cama de mármore. Nessa hora nenhum entre os presentes mantém a máscara sobre o rosto. Alguém diz que não foi Covid e que o médico safado queria assinalar Covid no atestado. Penso que atestado é o último currículo dos vivos. E o único necessário aos insepultos.
Ouço um trecho do Hino Nacional, de um pai nosso a ele misturado e o nome de um político acompanhado do ano de 2022. Ele acima de tudo. Ele acima de todos. O caixão se fecha. Lá vem o ônibus. Dou sinal, entro. Pago a passagem. Não é o ônibus certo, eu sabia. Não há nada de racional em querer me afastar dali o quanto antes.
Ainda vejo, à medida que o ônibus se desloca, que a Kombi que transportaria o caixão até o cemitério, do outro lado da estrada, acaba de manobrar.  Conheço aquele enredo. Já o presenciei algumas vezes e sei que não estou longe de protagonizá-lo a qualquer hora. Espero que o morto vá em paz, espero que eu, morto, me vá em paz e que aquela família, verde e amarela em suas manifestações político-fúnebres-partidárias se conforte como lhes seja possível.
Os mortos não voltam nem votam. Mas se quedam mortos, muitas vezes em função de certas escolhas. Mas o que sei eu? Nem emprego eu tenho! Não sei adorar falsos deuses, puxar tapete ou fingir que não vejo o escândalo da hipocrisia e da corrupção. A cara que eu tenho é só uma e ela não é amistosa aos farsantes e demagogos. Escolhi plantar a semente em cova funda no solo da Educação e há épocas em que a safra, que já não é farta, é ainda pior. É um ar rarefeito, são terrenos áridos, covas rasas, pesticidas, muito veneno mesmo. Quem escolhe Educação, às vezes passa dificuldades até durante a colheita.   Ah, mas quando floresce... é pra sempre. Será que a educação é o jardim das saudades?
Quando chegar a minha hora, espero que minha família possa perdoar todas as ausências e falhas. Ainda quando em troca de algum fugaz orgulho.  Num país de tantas lutas, nem precisarão usar luto. Mas que sejam livres e que possam seguir lutando para que o mundo seja menos dolorido,  mais justo e mais humano.  

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