Jardim
das Saudades
Erivelto
Reis
Por que fariam um ponto de ônibus
em frente a uma capela funerária? Porque ela fica em frente a um cemitério.
Porque essa será a vez mais triste que se embarca ou desembarca-se do coletivo?!
Porque todos os caminhos nos conduzem a esse momento, se não ao cemitério, a um
silêncio à capela?!
Escuto
um mistura de discursos. Meu currículo numa pasta sob o braço, preso ao corpo
como minha alma, a fome, a sede e alguma esperança. No bar, bem próximo há uma
mesa de sinuca. 20 fichas de sinuca e 4 eloquentes Itaipavas, meio quentes ou
quase geladas, são suficientes para declarar um gato contra um dos que estão no
bar disputando a partida. A bola branca suicidou-se algumas vezes. Seria essa a
relação entre sinuca de bico, suicídio, a morte e os cemitérios? Qual será a
próxima tacada do destino? A alegria de quem vence na ardósia sob o pano verde
da sinuca, naquele estabelecimento, tão comercial como o cemitério ou a capela,
contrasta com a tristeza dos que presenciam o corpo inerte, rodeado de murtas
sob um véu branco de filó e remorsos.
Uma
TV afixada à parede sobre o freezer da Brahma, que serve de abrigo aos quibes
que serão fritos e aos ovos cozidos que enfeitarão o balcão, na manhã do outro
dia, transmite uma partida de futebol entre clubes de futebol de outro país.
Vejo, enquanto aguardo o ônibus, um emprego e dias melhores, uma movimentação
de camisas verdes e amarelas em torno da capela – jave, jeová, jiré, jair, não
sei a que deus adoram, mas suas máscaras não estão bem posicionadas, e seus
gestos não são de comiseração e lamento. Lamento por eles. Suas preces
misturam-se a cantos tão desafinados, a lágrimas contidas. Quem perde a vida e
quem perde o emprego está morto para o mercado e, às vezes, até para a própria
família. Ouço palavras de ordem.
Exortações políticas à morte e exortações sentimentais a um político.
Sobre o morto sempre se fala bem, em
surdina e à boca pequena, nessas ocasiões, como era o modo de falar-se mal dos
vivos, antes das redes sociais. Meu ônibus está atrasado e eu também. Era pra
eu ter conseguido esse emprego em março. Vim a pé de uma escola a quatro quarteirões e agora parei nesse ponto pra esperar condução para a próxima entrevista. Será que tem banheiro nesse bar? Na
capela eu sei que tem. Pois nela foi velado meu pai. Eu não estava lá.
Contaram-me que foi muita gente. Nunca souberam, de fato, como foi pra mim.
Quando fui visitar a cova, ganhei um aviso contra os assaltos nas vielas do
cemitério. Memorizei a localização para nunca mais passar por ali: foi fácil,
árvore frondosa, alameda perto do muro, no fim definitivo de qualquer infância.
Há
um jeito silencioso de consolarmos as pessoas por dores pelas quais já
passamos. Abaixam-se os olhos, curva-se a cabeça. Boca não diz palavra, mas
pensamento corre a galope para o reino do “e se... ” e do “mas por quê?!...”. É
como se a dor do luto não se modulasse ou se amplificasse de pessoa a pessoa. A
gente consola o outro com o medo da dor que não sofreu ou com a lembrança da
dor que já teve e que não é mais como era no exato instante em que se fala dela.
Na capela, todos agora se posicionam
para erguer o caixão do centro de sua cama de mármore. Nessa hora nenhum entre
os presentes mantém a máscara sobre o rosto. Alguém diz que não foi Covid e que o
médico safado queria assinalar Covid no atestado. Penso que atestado é o último
currículo dos vivos. E o único necessário aos insepultos.
Ouço um trecho do Hino Nacional, de
um pai nosso a ele misturado e o nome de um político acompanhado do ano de
2022. Ele acima de tudo. Ele acima de todos. O caixão se fecha. Lá vem o
ônibus. Dou sinal, entro. Pago a passagem. Não é o ônibus certo, eu sabia. Não
há nada de racional em querer me afastar dali o quanto antes.
Ainda vejo, à medida que o ônibus
se desloca, que a Kombi que transportaria o caixão até o cemitério, do outro
lado da estrada, acaba de manobrar. Conheço aquele enredo. Já o presenciei algumas
vezes e sei que não estou longe de protagonizá-lo a qualquer hora. Espero que o
morto vá em paz, espero que eu, morto, me vá em paz e que aquela família, verde
e amarela em suas manifestações político-fúnebres-partidárias se conforte como
lhes seja possível.
Os mortos não voltam nem votam.
Mas se quedam mortos, muitas vezes em função de certas escolhas. Mas o que sei
eu? Nem emprego eu tenho! Não sei adorar falsos deuses, puxar tapete ou fingir
que não vejo o escândalo da hipocrisia e da corrupção. A cara que eu tenho é só
uma e ela não é amistosa aos farsantes e demagogos. Escolhi plantar a semente em
cova funda no solo da Educação e há épocas em que a safra, que já não é farta,
é ainda pior. É um ar rarefeito, são terrenos áridos, covas rasas, pesticidas,
muito veneno mesmo. Quem escolhe Educação, às vezes passa dificuldades até
durante a colheita. Ah, mas quando floresce... é pra sempre. Será
que a educação é o jardim das saudades?
Quando chegar a minha hora, espero que minha família possa perdoar todas
as ausências e falhas. Ainda quando em troca de algum fugaz orgulho. Num país de tantas lutas, nem precisarão usar
luto. Mas que sejam livres e que possam seguir lutando para que o mundo seja
menos dolorido, mais justo e mais humano.
Nenhum comentário:
Postar um comentário