A BALADA DOS FALSOS
REVOLTADOS
Erivelto Reis
Tenha revolta contra qualquer
privilégio que qualquer privilegiado já tenha: por exemplo, se um senador da República
se aposenta após 2 mandatos com o teto do salário e todo apoio do erário
público para seu apartamento, viagens, gasolina do carro, salário de
assessores, plano de saúde, e ainda vota contra os teus direitos como
trabalhador ou como cidadão, esse tipo de situação merece sua revolta. Ou
ainda, se um juiz que ganha um excelente salário e ainda tem auxílio paletó,
auxílio moradia e auxílio escola para seus filhos, sendo que o salário que
ganha já é suficiente para que arcasse com seu próprio vestuário, sua própria
moradia e com a educação de seus filhos, essa situação merece a sua revolta.
No entanto, qual é a coisa que tem
chocado você? Haver a possibilidade de um mínimo auxílio emergencial para
famílias em situação de vulnerabilidade social durante uma pandemia mundial.
Gente morrendo aos milhares por uma
doença para a qual já há vacina não revolta você, criança sendo explorada e
trabalhando em sinal não revolta, escola sucateada para grande parte da
população não revolta. Salário de exploração pago ao professor do seu filho não
revolta... miséria, desemprego em massa, violência, fascismo e corrupção não
revolta. Militares de alta patente e comprovada incompetência loteando estatais
não revolta... Entreguismo não revolta.
A buzina do motoboy passando próximo
ao retrovisor do teu sedã te revolta. O
atraso do teu empregado, humilhado e massacrado no execrável transporte público
te revolta. A tua empregada desejar ter uma assinatura na carteira de trabalho
te revolta. O filho do porteiro ser colega de turma de seu filho na Universidade pública em que
ambos estudam e são tratados com respeito e igualdade de condições te revolta. Uma
revolta apenas menor do que se o seu filho não tivesse entrado para a Universidade
pública e o teu porteiro pedisse folga um dia para ir à formatura...
Vai amadurecer, vai estudar, vai
aprender a ter empatia... depois vem falar em revolta. Não é extremismo o que
você tem. É fetiche pela covardia e pelo extermínio dos mais pobres. Não é
extremismo, não é polarização. É mediocridade mesmo.
Não é uma guerra de narrativas. É
apenas crueldade de pessoas violentas enrustidas que contam histórias em que os
corruptos, privilegiados e exploradores lhes pareçam heróis.
Eu fui aos correios hoje... e pelo
que lá eu vi, como proposta de gerência e metodologia de trabalho, desconfio
que boa parte do povo do Brasil nem saiba que a adaga risca o ar compondo um
réquiem para sua falência, para sua morte.
Obrigam os próprios trabalhadores a
abrirem buracos no casco do navio. O naufrágio é quase certo. Os prejuízos,
irreversíveis. Vão entregar o sistema hídrico, energético, de saúde, de
transporte, de educação - tudo o que a Constituição diz que o governo deveria
garantir como soberania de nosso país.
Se teremos que pagar pelos
principais serviços, a preço de mercado, à iniciativa privada, com tarifas
cotadas em dólar, por que compete ao governo nos extorquir através de todo tipo
de impostos, uma vez que ele abriu mão de fornecer os serviços, embolsou o
dinheiro dos impostos, não reinvestiu e ainda vendeu o patrimônio que gerações
de brasileiros ajudaram a construir?
Sua revolta é seletiva. Você não
está revoltado, está abalado pela ideia de igualdade entre as pessoas. Pela
ideia de que todo seu dinheiro e toda a sua network não conseguem impedir os
mais pobres de sonharem e de realizarem. Mesmo que ainda lhes possam adiar os
sonhos. O uso de um vocabulário politicamente correto é teu habeas corpus, teu
verniz mais frágil, tua empatia de mentirinha. Daí as palavras ‘meritocracia’, ‘berço’,
‘estirpe’, ‘mimimi’, ‘fatalismo’, ‘coitadismo’, ‘lulismo’, ‘empreendedorismo’
espumam pelo canto de sua boca como a saliva de um cão raivoso.
Sua revolta é revoltante. Sua
revolta nem é revolta. É preconceito mal disfarçado. Você é um velho e
encardido ursinho de pelúcia esquecido no porão dos poderosos, uma passadeira
dos ricaços, um boneco de ventriloquismo dos canalhas, um títere dos onanistas
do erário público.
Tudo o que os mais pobres possam ter
de bom, apesar do quanto se lhes ofereça de ruim, te deixa revoltadíssimo. Sua ignorância,
vendida como opinião ponderada, moralista e ética, é uma sentença de morte
diária, em branco contra qualquer um que seja pobre e sem a responsabilidade formal
da sua assinatura.
Você não é um vencedor, a porta do
cofre já estava escancarada. Não é excêntrico, é soturno e pedante. Não é
justo. Ninguém em sua posição o é. Não é nada, mas seu espelho grita as loas
que você tanto gosta. Quando muito, você é corrupto, herdeiro de corrupto ou
fechou os olhos para esses dados ao fazer negócios semi ou pré ou pós ilícitos com
corruptos ou filhos de corruptos. Você só não roubou, não corrompeu, não
trapaceou oficialmente, porque pagou pessoas para que alterassem as leis que
provariam ou que te impediriam de roubar, de corromper e de trapacear. Você
atropelaria a ética, sóbrio, em uma reta, à luz do dia e fugiria do local do
crime, sem exceder o limite de velocidade, sem olhar pelo retrovisor e sem
prestar socorro. A lei que não te alcança é prova do teu crime. A cadeia que
não te detém ou não te alcança é a moradia do seu verdadeiro eu.
Te revolta saber disso, não é?! E
todo mundo já sacou quem é você.
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