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Poeta - escritor - cronista - produtor cultural. Professor de Português e Literaturas. Especialista em Estudos Literários pela FEUC. Especialista em Literaturas Portuguesa e Africanas pela Faculdade de Letras da UFRJ. Mestre e Doutor em Literatura Portuguesa pela UFRJ. Nascido em Goiás, na cidade de Rio Verde. Casado. Pai de três filhos.

segunda-feira, 26 de julho de 2021

Texto: "A balada dos falsos revoltados", de Erivelto Reis

A BALADA DOS FALSOS REVOLTADOS

Erivelto Reis

 

            Tenha revolta contra qualquer privilégio que qualquer privilegiado já tenha: por exemplo, se um senador da República se aposenta após 2 mandatos com o teto do salário e todo apoio do erário público para seu apartamento, viagens, gasolina do carro, salário de assessores, plano de saúde, e ainda vota contra os teus direitos como trabalhador ou como cidadão, esse tipo de situação merece sua revolta. Ou ainda, se um juiz que ganha um excelente salário e ainda tem auxílio paletó, auxílio moradia e auxílio escola para seus filhos, sendo que o salário que ganha já é suficiente para que arcasse com seu próprio vestuário, sua própria moradia e com a educação de seus filhos, essa situação merece a sua revolta.

            No entanto, qual é a coisa que tem chocado você? Haver a possibilidade de um mínimo auxílio emergencial para famílias em situação de vulnerabilidade social durante uma pandemia mundial.

            Gente morrendo aos milhares por uma doença para a qual já há vacina não revolta você, criança sendo explorada e trabalhando em sinal não revolta, escola sucateada para grande parte da população não revolta. Salário de exploração pago ao professor do seu filho não revolta... miséria, desemprego em massa, violência, fascismo e corrupção não revolta. Militares de alta patente e comprovada incompetência loteando estatais não revolta... Entreguismo não revolta.

            A buzina do motoboy passando próximo ao retrovisor do teu sedã te revolta.  O atraso do teu empregado, humilhado e massacrado no execrável transporte público te revolta. A tua empregada desejar ter uma assinatura na carteira de trabalho te revolta. O filho do porteiro ser colega de turma  de seu filho na Universidade pública em que ambos estudam e são tratados com respeito e igualdade de condições te revolta. Uma revolta apenas menor do que se o seu filho não tivesse entrado para a Universidade pública e o teu porteiro pedisse folga um dia para ir à formatura...

            Vai amadurecer, vai estudar, vai aprender a ter empatia... depois vem falar em revolta. Não é extremismo o que você tem. É fetiche pela covardia e pelo extermínio dos mais pobres. Não é extremismo, não é polarização. É mediocridade mesmo.

            Não é uma guerra de narrativas. É apenas crueldade de pessoas violentas enrustidas que contam histórias em que os corruptos, privilegiados e exploradores lhes pareçam heróis.

            Eu fui aos correios hoje... e pelo que lá eu vi, como proposta de gerência e metodologia de trabalho, desconfio que boa parte do povo do Brasil nem saiba que a adaga risca o ar compondo um réquiem para sua falência, para sua morte.

            Obrigam os próprios trabalhadores a abrirem buracos no casco do navio. O naufrágio é quase certo. Os prejuízos, irreversíveis. Vão entregar o sistema hídrico, energético, de saúde, de transporte, de educação - tudo o que a Constituição diz que o governo deveria garantir como soberania de nosso país.

            Se teremos que pagar pelos principais serviços, a preço de mercado, à iniciativa privada, com tarifas cotadas em dólar, por que compete ao governo nos extorquir através de todo tipo de impostos, uma vez que ele abriu mão de fornecer os serviços, embolsou o dinheiro dos impostos, não reinvestiu e ainda vendeu o patrimônio que gerações de brasileiros ajudaram a construir?

            Sua revolta é seletiva. Você não está revoltado, está abalado pela ideia de igualdade entre as pessoas. Pela ideia de que todo seu dinheiro e toda a sua network não conseguem impedir os mais pobres de sonharem e de realizarem. Mesmo que ainda lhes possam adiar os sonhos. O uso de um vocabulário politicamente correto é teu habeas corpus, teu verniz mais frágil, tua empatia de mentirinha. Daí as palavras ‘meritocracia’, ‘berço’, ‘estirpe’, ‘mimimi’, ‘fatalismo’, ‘coitadismo’, ‘lulismo’, ‘empreendedorismo’ espumam pelo canto de sua boca como a saliva de um cão raivoso.

            Sua revolta é revoltante. Sua revolta nem é revolta. É preconceito mal disfarçado. Você é um velho e encardido ursinho de pelúcia esquecido no porão dos poderosos, uma passadeira dos ricaços, um boneco de ventriloquismo dos canalhas, um títere dos onanistas do erário público.

            Tudo o que os mais pobres possam ter de bom, apesar do quanto se lhes ofereça de ruim, te deixa revoltadíssimo. Sua ignorância, vendida como opinião ponderada, moralista e ética, é uma sentença de morte diária, em branco contra qualquer um que seja pobre e sem a responsabilidade formal da sua assinatura.

            Você não é um vencedor, a porta do cofre já estava escancarada. Não é excêntrico, é soturno e pedante. Não é justo. Ninguém em sua posição o é. Não é nada, mas seu espelho grita as loas que você tanto gosta. Quando muito, você é corrupto, herdeiro de corrupto ou fechou os olhos para esses dados ao fazer negócios semi ou pré ou pós ilícitos com corruptos ou filhos de corruptos. Você só não roubou, não corrompeu, não trapaceou oficialmente, porque pagou pessoas para que alterassem as leis que provariam ou que te impediriam de roubar, de corromper e de trapacear. Você atropelaria a ética, sóbrio, em uma reta, à luz do dia e fugiria do local do crime, sem exceder o limite de velocidade, sem olhar pelo retrovisor e sem prestar socorro. A lei que não te alcança é prova do teu crime. A cadeia que não te detém ou não te alcança é a moradia do seu verdadeiro eu.

            Te revolta saber disso, não é?! E todo mundo já sacou quem é você.

 

 

  

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