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Poeta - escritor - cronista - produtor cultural. Professor de Português e Literaturas. Especialista em Estudos Literários pela FEUC. Especialista em Literaturas Portuguesa e Africanas pela Faculdade de Letras da UFRJ. Mestre e Doutor em Literatura Portuguesa pela UFRJ. Nascido em Goiás, na cidade de Rio Verde. Casado. Pai de três filhos.

domingo, 20 de setembro de 2020

"Notas sobre minha Mãe", por Erivelto Reis

        Eu e minha mãe ouvíamos o show do Paulo Lopes, o Paulo Giovanne, o Haroldo de Andrade e o Show do Waldir Vieira com as canções do Roberto Carlos na Rádio Globo AM. Era 1981. Eu tinha 5 anos. O rádio era bege e chiava. Meu pai tinha uma bicicleta velha e saia para trabalhar de pedreiro e jardineiro com o Ubiraci, e com O Rei, irmão do Ubiraci. Passavam na bicicletaria do Bidala para pegar algumas ferramentas e calibrar o pneu da bicicleta. Morávamos na Teixeira de Aragão em Campo Grande. Eu memorizava as letras das canções, os títulos das músicas e ficava repetindo. Ela gostava. Achava incrível e pedia pra repetir. Eu tinha 5 anos. Ainda posso ouvir o chiado do rádio enquanto, na beira do tanque, na frente da casa, ela lavava roupa.

À tarde, quando meu pai chegava, ainda dava tempo de brincar no balanço velho de duas cadeirinhas. Havia um resto de aterro no quintal, Dona Dica e dona Lurdes eram nossas vizinhas. Lá na frente da casa de vila, Irene Vianna e sua família eram nossos amigos. Seu Abílio tinha uma venda na esquina e um baleiro mágico de tão encantador. Havia a Dona Isabel que tinha uma casa em frente ao Rocha Faria. Meu pai cuidava do jardim do velho sobrado e ela nos ajudava como podia. O ano era 1981. Um último ano de alegria sem mágoas.

Houve a oportunidade de meu pai e minha mãe se tornarem caseiros de um sítio. Trabalhávamos os cinco: meu pai, minha mãe, eu e meus irmãos. O salário era mínimo, atrasava e era um só. Fomos conhecer o sítio em 1982. Eu, minha mãe e meu avô Manoel. Meu pai e o Rei (Wilson) grande amigo dele, estavam trabalhando na reforma do portão. Subimos a rua lateral da Igreja do Bom Jesus, viramos à direita e pude ver meu pai e aquela "fortaleza" de sítio.

Trabalhamos dia e noite durante muitos anos. Desde às 5 da manhã até a noite. Todos os dias. Minha mãe cortava os panos de prato que protegiam os queijos que meu pai revendia, depois passou a fazer acabamento em crochê pra eles. Arrumávamos a casa simples, de três cômodos, que preservei, depois que comprei o sítio com minha gloriosa Gloria Regina. Cuidávamos da horta, dos animais, varríamos o quintal. Depois ela foi vender doces na porta de uma escola. E fazia blusas e caminhos de mesa de crochê para vender.

Com ela trabalhei vendendo perfumes, chapeados, vasos decorativos de cerâmica, potes plásticos em reuniões de bairro, no carro de lanches em eventos... Acompanhei todas as idas dela no pré-natal e nas consultas para o nascimento do meu irmão Elton em 1985. Lia as cartas que chegavam de Rio Verde, Goiás, e ouvia e interpretava o que ela queria dizer para escrever as cartas em resposta aos parentes. Fiz o cadastro e todos os meses ia ao banco real, com o dinheirinho que ela juntava, para pagar o carnê laranja de autonomia do antigo inps. Eu tinha 10 anos.

Quando sobrava alguma coisa, comprávamos discos: todos os sertanejos (que hoje seriam os de raiz e que nem eram famosos por aqui), Odair José, Carlos Alexandre, Amado Batista, Roberta Miranda, Fernando Mendes, José Augusto, Gil Max... Comprávamos, às vezes, usados na feira de Campo Grande. Eu nem gostava muito de ir à feira, porque era o caminho para ir ao posto de vacinação Belisário Pena. E eu tinha pavor de injeção. Tirávamos fotos vestidos de marinheirinhos - eu e meus irmãos - em frente à Guandu Veículos que tinha um jardim bem bonito, ou na praça Freire Alemão, em frente ao mercado Sendas. Ela revelava e mandava pros parentes em Rio Verde. Minha mãe e eu tínhamos quase a mesma idade. Diferença de 15 anos apenas. Voltamos juntos a Rio Verde, Goiás em três ocasiões: 1982, 1988 e 1990. Hoje chove aqui, num canto de meu olhar perdido.

Quando havia comemoração pelo dia das mães, na escola, eu sempre dizia um poeminha, uma quadrinha em homenagem a ela e a todas as mães. Na escola Jorge Washington para a qual ela me levava, passando por trás do cemitério e do RP Mont, ou no José Bonifácio. Sempre eu dizia ou inventava um poeminha, uns versinhos ou apresentava o que as professoras ensinavam. Eu nem era o aluno menos tímido, mas eu gostava de poesia e tinha boa memória. Uma vez, na terceira série, houve uma atividade de redação na escola e a minha redação foi selecionada. Aí, na reunião de pais, pediram pra ela ler a minha redação... só que ela não sabia ler.

Foi assim que decidi me tornar professor... Ela levava ou falava dos meus livros ou da minha trajetória - fosse como garçom ou como estudante e depois, como professor pra todo mundo. Não esquecia o dia do meu aniversário de jeito nenhum. Nesse de 2020, me trouxe um kit de culinária de presente, pra que eu fizesse minhas receitas. Infelizmente não há receita para um momento triste como esse.

Minha mãe morreu.
A porta fechou-se
Sem possibilidade de reabrir-se em fuga.
Trancado do lado de fora
Da casa de minha infância
Com a memória órfã
A gritar seu nome
Desesperadamente

Lá de dentro.

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