Eu e minha mãe
ouvíamos o show do Paulo Lopes, o Paulo Giovanne, o Haroldo de Andrade e o Show
do Waldir Vieira com as canções do Roberto Carlos na Rádio Globo AM. Era 1981.
Eu tinha 5 anos. O rádio era bege e chiava. Meu pai tinha uma bicicleta velha e
saia para trabalhar de pedreiro e jardineiro com o Ubiraci, e com O Rei, irmão
do Ubiraci. Passavam na bicicletaria do Bidala para pegar algumas ferramentas e
calibrar o pneu da bicicleta. Morávamos na Teixeira de Aragão em Campo Grande.
Eu memorizava as letras das canções, os títulos das músicas e ficava repetindo.
Ela gostava. Achava incrível e pedia pra repetir. Eu tinha 5 anos. Ainda posso
ouvir o chiado do rádio enquanto, na beira do tanque, na frente da casa, ela
lavava roupa.
À tarde, quando meu pai chegava, ainda dava tempo
de brincar no balanço velho de duas cadeirinhas. Havia um resto de aterro no
quintal, Dona Dica e dona Lurdes eram nossas vizinhas. Lá na frente da casa de
vila, Irene Vianna e sua família eram nossos amigos. Seu Abílio tinha
uma venda na esquina e um baleiro mágico de tão encantador. Havia a Dona Isabel
que tinha uma casa em frente ao Rocha Faria. Meu pai cuidava do jardim do velho
sobrado e ela nos ajudava como podia. O ano era 1981. Um último ano de alegria
sem mágoas.
Houve a oportunidade de meu pai e minha mãe se
tornarem caseiros de um sítio. Trabalhávamos os cinco: meu pai, minha mãe, eu e
meus irmãos. O salário era mínimo, atrasava e era um só. Fomos conhecer o sítio
em 1982. Eu, minha mãe e meu avô Manoel. Meu pai e o Rei (Wilson) grande amigo
dele, estavam trabalhando na reforma do portão. Subimos a rua lateral da Igreja
do Bom Jesus, viramos à direita e pude ver meu pai e aquela
"fortaleza" de sítio.
Trabalhamos dia e noite durante muitos anos.
Desde às 5 da manhã até a noite. Todos os dias. Minha mãe cortava os panos de
prato que protegiam os queijos que meu pai revendia, depois passou a fazer
acabamento em crochê pra eles. Arrumávamos a casa simples, de três cômodos, que
preservei, depois que comprei o sítio com minha gloriosa Gloria Regina.
Cuidávamos da horta, dos animais, varríamos o quintal. Depois ela foi vender
doces na porta de uma escola. E fazia blusas e caminhos de mesa de crochê para
vender.
Com ela trabalhei vendendo perfumes, chapeados,
vasos decorativos de cerâmica, potes plásticos em reuniões de bairro, no carro
de lanches em eventos... Acompanhei todas as idas dela no pré-natal e nas
consultas para o nascimento do meu irmão Elton em 1985. Lia as cartas que
chegavam de Rio Verde, Goiás, e ouvia e interpretava o que ela queria dizer
para escrever as cartas em resposta aos parentes. Fiz o cadastro e todos os
meses ia ao banco real, com o dinheirinho que ela juntava, para pagar o carnê
laranja de autonomia do antigo inps. Eu tinha 10 anos.
Quando sobrava alguma coisa, comprávamos
discos: todos os sertanejos (que hoje seriam os de raiz e que nem eram famosos
por aqui), Odair José, Carlos Alexandre, Amado Batista, Roberta Miranda,
Fernando Mendes, José Augusto, Gil Max... Comprávamos, às vezes, usados na feira
de Campo Grande. Eu nem gostava muito de ir à feira, porque era o caminho para
ir ao posto de vacinação Belisário Pena. E eu tinha pavor de injeção. Tirávamos
fotos vestidos de marinheirinhos - eu e meus irmãos - em frente à Guandu
Veículos que tinha um jardim bem bonito, ou na praça Freire Alemão, em frente
ao mercado Sendas. Ela revelava e mandava pros parentes em Rio Verde. Minha mãe
e eu tínhamos quase a mesma idade. Diferença de 15 anos apenas. Voltamos juntos
a Rio Verde, Goiás em três ocasiões: 1982, 1988 e 1990. Hoje chove aqui, num
canto de meu olhar perdido.
Quando havia comemoração pelo dia das mães, na
escola, eu sempre dizia um poeminha, uma quadrinha em homenagem a ela e a todas
as mães. Na escola Jorge Washington para a qual ela me levava, passando por
trás do cemitério e do RP Mont, ou no José Bonifácio. Sempre eu dizia ou
inventava um poeminha, uns versinhos ou apresentava o que as professoras
ensinavam. Eu nem era o aluno menos tímido, mas eu gostava de poesia e tinha
boa memória. Uma vez, na terceira série, houve uma atividade de redação na
escola e a minha redação foi selecionada. Aí, na reunião de pais, pediram pra
ela ler a minha redação... só que ela não sabia ler.
Foi assim que decidi me tornar professor... Ela
levava ou falava dos meus livros ou da minha trajetória - fosse como garçom ou
como estudante e depois, como professor pra todo mundo. Não esquecia o dia do
meu aniversário de jeito nenhum. Nesse de 2020, me trouxe um kit de culinária
de presente, pra que eu fizesse minhas receitas. Infelizmente não há receita
para um momento triste como esse.
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