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Poeta - escritor - cronista - produtor cultural. Professor de Português e Literaturas. Especialista em Estudos Literários pela FEUC. Especialista em Literaturas Portuguesa e Africanas pela Faculdade de Letras da UFRJ. Mestre e Doutor em Literatura Portuguesa pela UFRJ. Nascido em Goiás, na cidade de Rio Verde. Casado. Pai de três filhos.

quinta-feira, 15 de outubro de 2020

Epístola 1, para House, de Erivelto Reis

 

Aqui, 14 de outubro de 2020.

 

Prezado House,

 

                [“House”, refere-se à temperamento, eventuais traços de personalidade e (mau) humor, epifanias, capacidade intelectual e técnica fora do comum e certa semelhança física com o personagem da série.  “House” não é apelido. É epíteto.]

Você sabe que a escrita é uma forma de organizar as ideias. Se as ideias já estejam desorganizadas e assim apareçam no papel ou no post, não culpem a sintaxe ou as palavras que, a exemplo das pessoas, podem exercer função de sujeito ou objeto independente dos predicados que possuam.

            Estou nesse ofício de escrever cartas desde os oito anos – “ah, que saudade que eu tenho da aurora da minha vida” – posso dizer que sob alguns aspectos fui bem sucedido nessa empreitada. Teu convite, caro House, para essa aventura, suscitou em mim a pergunta clássica e recorrente em tudo que me proponho a fazer, supostamente sabendo como é que se faz: “como é que se faz isso?”. Pergunta a que se seguem suas gêmeas siamesas: “eu seu fazer isso?” e “pra que vou fazer isso”. Esta tríade quase sempre admoestada pela consciência de todas as perguntas: “Pra quê que eu fui me meter a fazer isso?”.

            Em sua mensagem/convite para as cartas (garanto pelo menos essa carta!), você mencionou o seu interesse pelo movimento da ideia, pela provocação, pelo diálogo e pela interlocução como fatores que você usa para criar, para se envolver com arte. Acho uma afirmativa racional e proativa de sua parte, embora não concorde totalmente com a sua premissa. Logo eu que já vi você escrever um poema, rabiscar um samba, desenhar um sentimento num guardanapo de papel, enquanto esperava o almoço. Que já vi você produzir um artigo espremido entre 4 tempos de aula no turno da manhã e 4 tempos de aula no turno da noite. Isso pra dizer que você, a meu ver, tem domínio sobre as suas expressões de arte e sobre o teu eito de trabalho. Na tua horta sempre chove, faça chuva ou faça sol.

            Naturalmente que ter alguém pra t(r)ocar com o que nós produzimos, seja na sala de aula, na pesquisa acadêmica ou através de nossas expressões de arte, sempre torna mais prazeroso o ofício. Me lembro de pensar, assim que comecei a capinar nas redes sociais, lá em 2011, que seria ótimo ter as pessoas lendo meus poemas e minhas crônicas e ler o que outros escreviam, interagir. Até descobrir, como você escreveu outro dia, que “like” não significa ler. E há dias em que não há nem o “like”. E não adianta dizer: “ah, mas o público de poesia é muito restrito” ou “só os poetas leem outros poetas” (ah, tá...). pode ser textão, textinho, meme, foto... Há dias que o outro (nós) parecer estar invisível, não importa a rede social.

            A despeito de tanta (in) visibilidade, o/a leitor/a idealizado/a, o/a amigo/a próximo/a quando curte, quando comenta, quando interage com a nossa expressão, quando reage ao nosso chamado torna o ofício de escrever (assim como ocorre com os alunos e alunas na sala de aula) mais salutar. Dissolve a ideia de eco, de nossa própria voz voltando sozinha no seu passeio na rede e dizendo “oh, rapaz, hoje não encontrei ninguém...”, dá ideia de reverberação, de haver cumprido um dever. Mas vai saber se a pessoa não quis apenas desabafar. Não gosto de pensar nas redes como um laboratório onde todo mundo faz todo mundo de cobaia.

            Sei que há pessoas ganhando pra fazer o que fazem bem ou fazem mal e gente que faz o que faz muito bem sem ganhar nada. Seja no magistério, seja na literatura, na música, no futebol... E ganhar não é o mesmo que atribuir valor... a mesma história do ‘like’.

            Amanhã é dia do professor. Eu sou completamente agradecido aos meus professores  e professoras pelo que fizeram por mim enquanto professores. Conheço brilhantes professores e professoras, meus colegas de profissão. Gente honrada, digna, capaz, ética, consciente de suas imperfeições e resilientes, incapazes de desistir. E conheço gente incapaz de dar a mão à palmatória, de sistematicamente reconhecer que errou – partindo da premissa de que, sazonalmente, padeçamos desse mal.

Você, particularmente, está entre os melhores e mais comprometidos que já vi. Técnico, compenetrado, com um humor fino de quem de repente tem uma caixinha de fósforo numa mesa de bar e comanda o breque. Metódico, estudioso e modesto. Quase em estado de humildade. Gigante na sua área de atuação, você demonstra sempre empatia por seus alunos e alunas e resignação para superar as dificuldades.

Eu um dia entrei na sua sala, lembra? Pra assistir você falando de Shakespeare. Desfilaram na sua argumentação, toda baseada em teóricos como Harold Bloom, Terry Eagleton, Antoine Compagnon e Bárbara Heliodora, alguns dos principais personagens da obra de William, seu íntimo autor. Como aprendi, como me emocionei, como se abriram possibilidades de diálogo a partir do que vi você fazendo para uma sala lotada (muito cheia, mesmo) de alunos/as desde os novatos/as na graduação, até os/as veteranos/as prestes a se formarem. Em ambos os casos, com poucos recursos, alguns/mas, assim como eu, completamente fascinados/as a cada argumento ou informação que você trazia sobre as obras e os teóricos que as estudaram, além evidentemente de suas colocações como professor pesquisador; e outros/as, digamos assim, absortos/as quanto à aula.

Você, como boa pessoa que é, e afeito aos parangolés e salamaleques da vida acadêmica, criou em sua exposição naquele dia ao menos duas ou três oportunidades para mencionar elogiosamente o meu trabalho e minha pesquisa e estabelecer breves considerações sobre as conexões entre as literaturas e outras formas de arte e de linguagem. Uma aula de aula e aula de postura profissional e gentileza. Não dá pra esquecer. Também fui assistir na sua turma a uma aula sobre o documentário Uma noite em 67. Acho que era uma comunicação num evento de Letras. Já te vi falando de Vinícius, de Chico Buarque, de Cecília Meireles. Já fui à UFRJ assistir você falar de Bob Dylan... Sei que você pensa criticamente a escola e os educadores. Você pensa realmente nos seus alunos. Pensa nos processos criativos. Você pensa amorosamente.

E você já embarcou em praticamente todas as ‘ciladas’ que eu te coloquei precisando de sua ajuda e de seu apoio para revisões, traduções, mediar eventos, apresentar filmes (especialmente, o filme Lion, na primeira aula depois do falecimento de meu pai, quando eu ainda estava chegando de um congresso em outro país). Já falamos juntos da obra de Drummond, de Primitivo Paes... Você é um professor e um escritor que eu tenho como modelo. Você foi assistir à minha defesa da dissertação. Já criamos paródia, já defumamos no restaurante de comida mineira e saímos cheirando à gordura; já almoçamos bem no restaurante de comida árabe, já fui à Paraty pra te ver e não te vi, já tomamos café amargo, já comemos o pão que o diabo amassou.

Gosto de entrar na internet e descobrir que você escreveu. É como uma coluna num jornal. Gosto dessa interlocução. Gosto de epistolografias, mas será que saberei escrever cartas? Novamente as perguntas... Porque mesmo as cartas breves são longas e podem durar pra sempre e a vida é sempre curta.

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