Aqui, 14 de outubro
de 2020.
Prezado House,
[“House”, refere-se à temperamento, eventuais
traços de personalidade e (mau) humor, epifanias, capacidade intelectual e
técnica fora do comum e certa semelhança física com o personagem da série. “House” não é apelido. É epíteto.]
Você sabe que a escrita é uma forma de organizar as ideias.
Se as ideias já estejam desorganizadas e assim apareçam no papel ou no post,
não culpem a sintaxe ou as palavras que, a exemplo das pessoas, podem exercer
função de sujeito ou objeto independente dos predicados que possuam.
Estou nesse ofício de escrever
cartas desde os oito anos – “ah, que saudade que eu tenho da aurora da minha
vida” – posso dizer que sob alguns aspectos fui bem sucedido nessa empreitada.
Teu convite, caro House, para essa aventura, suscitou em mim a pergunta
clássica e recorrente em tudo que me proponho a fazer, supostamente sabendo
como é que se faz: “como é que se faz isso?”. Pergunta a que se seguem suas
gêmeas siamesas: “eu seu fazer isso?” e “pra que vou fazer isso”. Esta tríade
quase sempre admoestada pela consciência de todas as perguntas: “Pra quê que eu
fui me meter a fazer isso?”.
Em sua mensagem/convite para as
cartas (garanto pelo menos essa carta!), você mencionou o seu interesse pelo
movimento da ideia, pela provocação, pelo diálogo e pela interlocução como
fatores que você usa para criar, para se envolver com arte. Acho uma afirmativa
racional e proativa de sua parte, embora não concorde totalmente com a sua
premissa. Logo eu que já vi você escrever um poema, rabiscar um samba, desenhar
um sentimento num guardanapo de papel, enquanto esperava o almoço. Que já vi
você produzir um artigo espremido entre 4 tempos de aula no turno da manhã e 4
tempos de aula no turno da noite. Isso pra dizer que você, a meu ver, tem
domínio sobre as suas expressões de arte e sobre o teu eito de trabalho. Na tua
horta sempre chove, faça chuva ou faça sol.
Naturalmente que ter alguém pra
t(r)ocar com o que nós produzimos, seja na sala de aula, na pesquisa acadêmica
ou através de nossas expressões de arte, sempre torna mais prazeroso o ofício.
Me lembro de pensar, assim que comecei a capinar nas redes sociais, lá em 2011,
que seria ótimo ter as pessoas lendo meus poemas e minhas crônicas e ler o que
outros escreviam, interagir. Até descobrir, como você escreveu outro dia, que
“like” não significa ler. E há dias em que não há nem o “like”. E não adianta
dizer: “ah, mas o público de poesia é muito restrito” ou “só os poetas leem
outros poetas” (ah, tá...). pode ser textão, textinho, meme, foto... Há dias
que o outro (nós) parecer estar invisível, não importa a rede social.
A despeito de tanta (in)
visibilidade, o/a leitor/a idealizado/a, o/a amigo/a próximo/a quando curte,
quando comenta, quando interage com a nossa expressão, quando reage ao nosso
chamado torna o ofício de escrever (assim como ocorre com os alunos e alunas na
sala de aula) mais salutar. Dissolve a ideia de eco, de nossa própria voz
voltando sozinha no seu passeio na rede e dizendo “oh, rapaz, hoje não
encontrei ninguém...”, dá ideia de reverberação, de haver cumprido um dever.
Mas vai saber se a pessoa não quis apenas desabafar. Não gosto de pensar nas
redes como um laboratório onde todo mundo faz todo mundo de cobaia.
Sei que há pessoas ganhando pra fazer
o que fazem bem ou fazem mal e gente que faz o que faz muito bem sem ganhar
nada. Seja no magistério, seja na literatura, na música, no futebol... E ganhar
não é o mesmo que atribuir valor... a mesma história do ‘like’.
Amanhã é dia do professor. Eu sou
completamente agradecido aos meus professores
e professoras pelo que fizeram por mim enquanto professores. Conheço
brilhantes professores e professoras, meus colegas de profissão. Gente honrada,
digna, capaz, ética, consciente de suas imperfeições e resilientes, incapazes
de desistir. E conheço gente incapaz de dar a mão à palmatória, de
sistematicamente reconhecer que errou – partindo da premissa de que,
sazonalmente, padeçamos desse mal.
Você, particularmente, está entre os melhores e mais comprometidos
que já vi. Técnico, compenetrado, com um humor fino de quem de repente tem uma
caixinha de fósforo numa mesa de bar e comanda o breque. Metódico, estudioso e
modesto. Quase em estado de humildade. Gigante na sua área de atuação, você demonstra
sempre empatia por seus alunos e alunas e resignação para superar as
dificuldades.
Eu um dia entrei na sua sala, lembra? Pra assistir você
falando de Shakespeare. Desfilaram na sua argumentação, toda baseada em
teóricos como Harold Bloom, Terry Eagleton, Antoine Compagnon e Bárbara
Heliodora, alguns dos principais personagens da obra de William, seu íntimo
autor. Como aprendi, como me emocionei, como se abriram possibilidades de
diálogo a partir do que vi você fazendo para uma sala lotada (muito cheia, mesmo)
de alunos/as desde os novatos/as na graduação, até os/as veteranos/as prestes a
se formarem. Em ambos os casos, com poucos recursos, alguns/mas, assim como eu,
completamente fascinados/as a cada argumento ou informação que você trazia
sobre as obras e os teóricos que as estudaram, além evidentemente de suas
colocações como professor pesquisador; e outros/as, digamos assim, absortos/as
quanto à aula.
Você, como boa pessoa que é, e afeito aos parangolés e
salamaleques da vida acadêmica, criou em sua exposição naquele dia ao menos
duas ou três oportunidades para mencionar elogiosamente o meu trabalho e minha
pesquisa e estabelecer breves considerações sobre as conexões entre as
literaturas e outras formas de arte e de linguagem. Uma aula de aula e aula de
postura profissional e gentileza. Não dá pra esquecer. Também fui assistir na
sua turma a uma aula sobre o documentário Uma
noite em 67. Acho que era uma comunicação num evento de Letras. Já te vi
falando de Vinícius, de Chico Buarque, de Cecília Meireles. Já fui à UFRJ
assistir você falar de Bob Dylan... Sei que você pensa criticamente a escola e
os educadores. Você pensa realmente nos seus alunos. Pensa nos processos
criativos. Você pensa amorosamente.
E você já embarcou em praticamente todas as ‘ciladas’ que eu
te coloquei precisando de sua ajuda e de seu apoio para revisões, traduções,
mediar eventos, apresentar filmes (especialmente, o filme Lion, na primeira
aula depois do falecimento de meu pai, quando eu ainda estava chegando de um
congresso em outro país). Já falamos juntos da obra de Drummond, de Primitivo
Paes... Você é um professor e um escritor que eu tenho como modelo. Você foi
assistir à minha defesa da dissertação. Já criamos paródia, já defumamos no
restaurante de comida mineira e saímos cheirando à gordura; já almoçamos bem no
restaurante de comida árabe, já fui à Paraty pra te ver e não te vi, já tomamos
café amargo, já comemos o pão que o diabo amassou.
Gosto de entrar na
internet e descobrir que você escreveu. É como uma coluna num jornal. Gosto
dessa interlocução. Gosto de epistolografias, mas será que saberei escrever
cartas? Novamente as perguntas... Porque mesmo as cartas breves são longas e
podem durar pra sempre e a vida é sempre curta.
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