Aqui, 30 de
outubro de 2020.
Prezado Cícero
César e seus companheiros e companheiras:
Não vai ser a última vez que assistiremos a uma ebulição popular dessa
magnitude como a que o povo chileno mostrou ao mundo. Tampouco, receio que essa
manifestação não desperte em nós o sentido de mobilização, em face à corja que
nos governa. Mudar as leis, chantagear trabalhadores e trabalhadoras com o
sequestro e aniquilação de seus direitos mais básicos; apresentar o estado como
inimigo do cidadão e o contribuinte como dependente de esmola, beneplácitos do
poder público. A depender de quem governe, nem o ar que respiramos será
saudável.
Não tenho esperança na empatia da elite pela classe de trabalhadores/as.
Seu asco ao intelecto dos que servem é como um preconceito pós-colonial jamais
curado. Antes, quando não havia um celular em cada mão e uma rede social de
fuga e marcha – às vezes pra lugar nenhum ─, silenciar a voz do empregado, do
contratado, do “classe média baixa”, do professorado era só uma questão de
demissão simples, de mudar de andar, de repartição, de chefia, de função: agora
é preciso aniquilar a honra, humilhar publicamente, corromper os de entorno e
vender caro ou barato – pouco importa ─, a tranquilidade de seu sono e de sua
estabilidade econômica, psíquica e emocional.
Para tamanha crueldade estatal, privada e/ou institucional, a propaganda,
os conchavos, os conluios, a desvalorização do discurso e a supervalorização da
hierarquia têm servido aos seus propósitos. É sentar-se na cadeira e supor-se o
cargo que ocupa. Raros homens e mulheres distinguem-se ou recusam funções em
que precisem afrontar seus próprios princípios e subjugar e vender e trair seus
semelhantes. Nem tão comuns são os profissionais que na coisa pública, no
serviço público, se dedicam com a qualidade que pretendem demonstrar no setor
privado. E tantos têm sido os que, ancorados na vida pública, a degradam,
denigrem e a usam para compor uma ópera de escárnio contra terceiros, desafetos
e divergentes de suas nefastas práticas.
Também me lembro do filme O Carteiro e o Poeta, do Antonio Skármeta e de
como me emocionei ao vê-lo, recentemente, no filme do Selton Mello O Filme da
Minha Vida, também baseado em sua obra, no livro Um pai de Cinema. O personagem
Mario Ruoppolo, o carteiro que aprende a força das metáforas e ensina ao poeta
que a poesia é de quem precisa dela, torna-se gradativamente, à medida que tem
contato com a arte da literatura, um ser político, crítico. Seu primeiro poema:
“as redes tristes de meu pai”, escrito em homenagem ao pai que era pescador,
empresta-nos a dimensão de que nossa dor só pode ser arte, depressão ou
revolução quer a expressemos ou não.
Este é um tempo de ausências e de exílios. Temo que seja pior ainda para
os nossos filhos. Temo por nossa profissão, por nossos alunos e pela escravidão
hi-tech do desprezo à arte, ao outro
e suas experiências subjetivas, à ciência, à escola e à democracia. Trocam-se
afetos reais por likes por impulso e
por ocasião, imaginação, por nudes e microvisualização, dias de sol ou nublados
pela luminosidade do ecrã da tela.
Vi A Liberdade Guiando o Povo, de Delacroix na imagem da manifestação
recente que mobilizou o Chile e que correu o mundo. Penso, no entanto, que
muita gente não entendeu quase nada.
Penso que só quando alguém - entre os infames que partidarizam a questão
-, for injustamente acusado e falsamente julgado e for preso por corruptos mal
intencionados é que as pessoas entenderão o teatro de horror do nosso país.
Também me lembrei do impactante Democracia em Vertigem, da Petra Costa e do
documentário Uma noite em 67, do Ricardo Calil e Renato Terra. Nossos medos
conversam no Brasil e no mundo através da história da democracia nos países da
América do Sul. E as histórias que contam são de tortura, assassinato, trapaças
e corrupção. Os ricos desses lugares têm ojeriza aos mais pobres. Roubam seu
tempo, mesmo se pagam por ele.
Vivemos na época explícita do racismo, machismo, da violência, da
corrupção e do clientelismo. Sinto, às vezes, que a estupidez parece mais
insistente do que a sabedoria. Não há
antibióticos para o fascismo.
Já faz um ano e vivemos as mesmas coisas todo dia.
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