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Poeta - escritor - cronista - produtor cultural. Professor de Português e Literaturas. Especialista em Estudos Literários pela FEUC. Especialista em Literaturas Portuguesa e Africanas pela Faculdade de Letras da UFRJ. Mestre e Doutor em Literatura Portuguesa pela UFRJ. Nascido em Goiás, na cidade de Rio Verde. Casado. Pai de três filhos.

sexta-feira, 30 de outubro de 2020

EPÍSTOLA 3 - PARA CÍCERO CÉSAR

 

Aqui, 30 de outubro de 2020.

 

Prezado Cícero César e seus companheiros e companheiras:

 

Não vai ser a última vez que assistiremos a uma ebulição popular dessa magnitude como a que o povo chileno mostrou ao mundo. Tampouco, receio que essa manifestação não desperte em nós o sentido de mobilização, em face à corja que nos governa. Mudar as leis, chantagear trabalhadores e trabalhadoras com o sequestro e aniquilação de seus direitos mais básicos; apresentar o estado como inimigo do cidadão e o contribuinte como dependente de esmola, beneplácitos do poder público. A depender de quem governe, nem o ar que respiramos será saudável.

Não tenho esperança na empatia da elite pela classe de trabalhadores/as. Seu asco ao intelecto dos que servem é como um preconceito pós-colonial jamais curado. Antes, quando não havia um celular em cada mão e uma rede social de fuga e marcha – às vezes pra lugar nenhum ─, silenciar a voz do empregado, do contratado, do “classe média baixa”, do professorado era só uma questão de demissão simples, de mudar de andar, de repartição, de chefia, de função: agora é preciso aniquilar a honra, humilhar publicamente, corromper os de entorno e vender caro ou barato – pouco importa ─, a tranquilidade de seu sono e de sua estabilidade econômica, psíquica e emocional.

Para tamanha crueldade estatal, privada e/ou institucional, a propaganda, os conchavos, os conluios, a desvalorização do discurso e a supervalorização da hierarquia têm servido aos seus propósitos. É sentar-se na cadeira e supor-se o cargo que ocupa. Raros homens e mulheres distinguem-se ou recusam funções em que precisem afrontar seus próprios princípios e subjugar e vender e trair seus semelhantes. Nem tão comuns são os profissionais que na coisa pública, no serviço público, se dedicam com a qualidade que pretendem demonstrar no setor privado. E tantos têm sido os que, ancorados na vida pública, a degradam, denigrem e a usam para compor uma ópera de escárnio contra terceiros, desafetos e divergentes de suas nefastas práticas.

Também me lembro do filme O Carteiro e o Poeta, do Antonio Skármeta e de como me emocionei ao vê-lo, recentemente, no filme do Selton Mello O Filme da Minha Vida, também baseado em sua obra, no livro Um pai de Cinema. O personagem Mario Ruoppolo, o carteiro que aprende a força das metáforas e ensina ao poeta que a poesia é de quem precisa dela, torna-se gradativamente, à medida que tem contato com a arte da literatura, um ser político, crítico. Seu primeiro poema: “as redes tristes de meu pai”, escrito em homenagem ao pai que era pescador, empresta-nos a dimensão de que nossa dor só pode ser arte, depressão ou revolução quer a expressemos ou não.

Este é um tempo de ausências e de exílios. Temo que seja pior ainda para os nossos filhos. Temo por nossa profissão, por nossos alunos e pela escravidão hi-tech do desprezo à arte, ao outro e suas experiências subjetivas, à ciência, à escola e à democracia. Trocam-se afetos reais por likes por impulso e por ocasião, imaginação, por nudes e microvisualização, dias de sol ou nublados pela luminosidade do ecrã da tela.

Vi A Liberdade Guiando o Povo, de Delacroix na imagem da manifestação recente que mobilizou o Chile e que correu o mundo. Penso, no entanto, que muita gente não entendeu quase nada.  Penso que só quando alguém - entre os infames que partidarizam a questão -, for injustamente acusado e falsamente julgado e for preso por corruptos mal intencionados é que as pessoas entenderão o teatro de horror do nosso país. Também me lembrei do impactante Democracia em Vertigem, da Petra Costa e do documentário Uma noite em 67, do Ricardo Calil e Renato Terra. Nossos medos conversam no Brasil e no mundo através da história da democracia nos países da América do Sul. E as histórias que contam são de tortura, assassinato, trapaças e corrupção. Os ricos desses lugares têm ojeriza aos mais pobres. Roubam seu tempo, mesmo se pagam por ele.

Vivemos na época explícita do racismo, machismo, da violência, da corrupção e do clientelismo. Sinto, às vezes, que a estupidez parece mais insistente do que a sabedoria.  Não há antibióticos para o fascismo.

Já faz um ano e vivemos as mesmas coisas todo dia.

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