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Poeta - escritor - cronista - produtor cultural. Professor de Português e Literaturas. Especialista em Estudos Literários pela FEUC. Especialista em Literaturas Portuguesa e Africanas pela Faculdade de Letras da UFRJ. Mestre e Doutor em Literatura Portuguesa pela UFRJ. Nascido em Goiás, na cidade de Rio Verde. Casado. Pai de três filhos.

domingo, 25 de outubro de 2020

EPÍSTOLA 2 - PARA CÍCERO

 

EPÍSTOLA 2 – PARA CÍCERO

Aqui, 25 de outubro de 2020.

 

 

House,

 

            Hoje seria aniversário de meu pai.

            Percebi o semiapagamento da data na manhã da checagem de meus compromissos de estudos e leituras do dia de hoje. Assustei-me bastante. Os que amamos se apagam primeiro do calendário de nossos afazeres diários e não se apagam nunca de nossa alma. Basta um clique, um cheiro, um som, uma luz, um timbre, uma palavra, uma cor, um sabor... e, do espaço onírico e pretensamente espiritual em que estiverem, são convocados para estar na presença do monte de ruínas em que nos vemos e que, se não somos, nos tornamos imediatamente à evocação de suas lembranças. Não existe fortaleza inescrutável à memória e à saudade. Talvez o esquecimento. Mas é de tanto se lembrar de algo ou de alguém em particular que nos esquecemos de tudo. 

            Isto posto, não se deve dizer a um matuto que ele é matuto porque ele passa a semana matutando. Mesmo se você tiver razão. E foi o que aconteceu: fiquei pensando em sobre como de fato, sou tímido, coisa que sempre soube e da qual sempre falei. E fiquei pensando na energia que você atribuiu ao sítio. Ela existe. É forte. E lido com ela há quase quarenta anos. Aqui trabalhei e trabalho sempre com muito afinco e plantei boa parte dos meus sonhos e do meu coração. É raiz de tudo que eu faço, palco de reminiscências. Meus filhos nasceram aqui e neste espaço projeto minha velhice.

            Faz pouco mais de um mês do falecimento de minha mãe. Vou dizer a você que as coisas não estão fáceis. É uma sensação de desconstrução muito grande. Fico me reorganizando o tempo todo. Cada pensamento, cada ação prática esbarram na constatação da proximidade imediata do recém-ocorrido desastre. Ainda tenho que lidar com as questões práticas.

Fui à Nova Iguaçu para encerrar a conta de minha mãe no banco. É uma peregrinação. Há muitos e muitos anos não eu não ia ao centro de Nova Iguaçu. E percorrer aquelas ruas e imaginar o que minha mãe via todos os meses quando ia receber sua pensão de viúva: as lojinhas de aviamento e produtos artesanais que frequentava, as lojas onde comprava lembrancinhas pros netinhos e netinhas dela... Um dia difícil demais. Mais um.

Quanto a você não sei, mas tenho poucas expectativas positivas quanto a 2021. Ainda sinto muito medo da contaminação por Covid-19 e do sofrimento que o tratamento é capaz de causar nas pessoas.  Tenho dado as aulas virtuais da educação remota, acompanhado a onda devastadora de demissões nas escolas e faculdades particulares, questões graves ligadas ao machismo e ao preconceito que eclodem dos jornais a cada dia. Mesmo a leva de filmes e séries que gosto tanto de assistir tem rareado um pouco.

Tenho lido autores portugueses. João Tordo, Patrícia Reis, Filipa Mello, Lobo Antunes, Inês Pedrosa, Dulce Cardoso... Eu me inscrevi num curso de extensão a distância na UFSCar – Universidade Federal de São Carlos, sob orientação do professor Jorge Vicente Valentim. Um curso que propõe, além da leitura dos “novíssimos”, um encontro com os autores e autoras. Apanhei bastante na primeira aula por conta do domínio das tecnologias de videoconferência (e pela teimosia de trabalhar no meu computador de mesa, que me dá mais conforto), mas tive que me render ao notebook.

Na segunda aula, para minha surpresa, uma das alunas que estavam no curso, me escreveu no chat dizendo que minha dissertação está entre as obras do anteprojeto de mestrado dela na UFRJ. Fiquei bastante animado. E na sequência, pude dialogar com os/as colegas e com o professor sobre aspectos do cânone literário e um dos colegas disse que estava tomando nota das minhas considerações na minha fala e nos meus comentários no chat.

Essa segunda aula me encheu de ânimo e fez com que eu me lembrasse dos tempos de sala de aula como professor universitário e como aluno dos cursos de pós-graduação, especialmente dos momentos de diálogo, seja em sala de aula, ou das conversas que travávamos na sala dos professores. 

Fizemos parte de um grande time de professores e professoras com protagonismo em muitos momentos de nossas áreas. Essa é uma lembrança muito boa. Desejaria que esses momentos pudessem voltar, mas vejo cada vez mais a Literatura sendo tratada como um saber instrumental, facultativo, ornamental e complementar de outros saberes tais como estudos culturais, ou então, com tecnicismos distintivos de valores não inerentes aos autores e obras estudados, mas aos seus estudiosos/as, produzindo-se assim, em alguns casos, uma espécie de gradação, de hierarquia entre os pesquisadores/as.

Sinto, e talvez seja um sentir de quem foi “defenestrado” ou “enxotado” do cotidiano da docência no ensino superior, como se domínio de uma área, ou atuação em uma área pudessem definir valor pessoal do pesquisador ou pesquisadora. E vejo muitos holofotes e clubismos em alguns temas. O que faz com que pareçam herméticos e inacessíveis mesmo aos demais pesquisadores/as. Mas pode ser talvez um sentir de quem tá no banco sem previsão de voltar a entrar em campo e menos ainda de vir a ser titular.

Em contrapartida, vejo que muitos jovens professores e professoras estão se adequando às ferramentas dos canais de comunicação virtual e construindo um ethos de estudos literários baseado em tarefas, gameficações (realizar determinadas leituras em determinado tempo mediante escore virtual de prestígio e/ou recebimento de produtos, bens e/ou serviços) ou de listas de checagem de aspectos, personagens, períodos, temas, etc.. Numa espécie de maratona. 

Há uma profusão de canais (alguns muito bons), mas fico pensando nos caminhos da próxima década em relação ao ensino de Literatura no Brasil. Certa vez escrevi a um notável professor falando sobre minha preocupação com relação à omissão da nomenclatura Literatura nos cursos e documentos emitidos pelo MEC, sobretudo nos cursos de licenciatura oferecidos pelas IES particulares, e nos nomes das disciplinas no Governo do Estado do Rio de Janeiro, bem como sobre o tempo destinado ao ensino de Literatura na grade curricular... Ao que ele me respondeu que já não possuía condição de opinar em função de estar aposentado do magistério. Um balde de água fria.

Entendo que o sujeito se aposenta do magistério, mas não deixa de ser professor.  Queria que a ABL se posicionasse e pudesse de alguma forma exercer uma função na linha de frente da defesa do ensino de Literatura em nosso país. Ao que me consta, quando muito, defende os imortais e suas obras. Dentro em pouco, se nada for feito, nem imortais, nem obras.

O cânone brota do meio das pedras e não há incenso de grandes editoras capaz de sacralizar o gosto do público ou garantir a permanência das obras.  Sem os cursos de Literatura minimamente organizados e respaldados, o futuro é a arqueologia de teorias e conceitos da Literatura ou sua diluição irreversível no corpo dos estudos culturais.  Que as coisas melhorem e que eu possa estar equivocado. Coisa de matuto.

Fico por aqui, sem muito assunto, mas cheio de coisas pra dizer. Milagre que alguém as leia, milagre que alguém as ouça. Depois disso, que venham pães e peixes. Que o sacrifício é certo. 

Recomendações a você, Layla e as crianças.

Abração.

           

 

 

 

 

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