EPÍSTOLA 2 – PARA CÍCERO
Aqui, 25 de outubro de 2020.
House,
Hoje
seria aniversário de meu pai.
Percebi
o semiapagamento da data na manhã da checagem de meus compromissos de estudos e
leituras do dia de hoje. Assustei-me bastante. Os que amamos se apagam primeiro
do calendário de nossos afazeres diários e não se apagam nunca de nossa alma.
Basta um clique, um cheiro, um som, uma luz, um timbre, uma palavra, uma cor,
um sabor... e, do espaço onírico e pretensamente espiritual em que estiverem,
são convocados para estar na presença do monte de ruínas em que nos vemos e
que, se não somos, nos tornamos imediatamente à evocação de suas lembranças.
Não existe fortaleza inescrutável à memória e à saudade. Talvez o esquecimento.
Mas é de tanto se lembrar de algo ou de alguém em particular que nos esquecemos
de tudo.
Isto
posto, não se deve dizer a um matuto que ele é matuto porque ele passa a semana
matutando. Mesmo se você tiver razão. E foi o que aconteceu: fiquei pensando em
sobre como de fato, sou tímido, coisa que sempre soube e da qual sempre falei.
E fiquei pensando na energia que você atribuiu ao sítio. Ela existe. É forte. E
lido com ela há quase quarenta anos. Aqui trabalhei e trabalho sempre com muito
afinco e plantei boa parte dos meus sonhos e do meu coração. É raiz de tudo que
eu faço, palco de reminiscências. Meus filhos nasceram aqui e neste espaço
projeto minha velhice.
Faz
pouco mais de um mês do falecimento de minha mãe. Vou dizer a você que as
coisas não estão fáceis. É uma sensação de desconstrução muito grande. Fico me
reorganizando o tempo todo. Cada pensamento, cada ação prática esbarram na
constatação da proximidade imediata do recém-ocorrido desastre. Ainda tenho que
lidar com as questões práticas.
Fui à Nova Iguaçu para
encerrar a conta de minha mãe no banco. É uma peregrinação. Há muitos e muitos
anos não eu não ia ao centro de Nova Iguaçu. E percorrer aquelas ruas e
imaginar o que minha mãe via todos os meses quando ia receber sua pensão de
viúva: as lojinhas de aviamento e produtos artesanais que frequentava, as lojas
onde comprava lembrancinhas pros netinhos e netinhas dela... Um dia difícil
demais. Mais um.
Quanto a você não sei,
mas tenho poucas expectativas positivas quanto a 2021. Ainda sinto muito medo
da contaminação por Covid-19 e do sofrimento que o tratamento é capaz de causar
nas pessoas. Tenho dado as aulas
virtuais da educação remota, acompanhado a onda devastadora de demissões nas
escolas e faculdades particulares, questões graves ligadas ao machismo e ao
preconceito que eclodem dos jornais a cada dia. Mesmo a leva de filmes e séries
que gosto tanto de assistir tem rareado um pouco.
Tenho lido autores portugueses.
João Tordo, Patrícia Reis, Filipa Mello, Lobo Antunes, Inês Pedrosa, Dulce
Cardoso... Eu me inscrevi num curso de extensão a distância na UFSCar –
Universidade Federal de São Carlos, sob orientação do professor Jorge Vicente
Valentim. Um curso que propõe, além da leitura dos “novíssimos”, um encontro
com os autores e autoras. Apanhei bastante na primeira aula por conta do
domínio das tecnologias de videoconferência (e pela teimosia de trabalhar no
meu computador de mesa, que me dá mais conforto), mas tive que me render ao
notebook.
Na segunda aula, para
minha surpresa, uma das alunas que estavam no curso, me escreveu no chat
dizendo que minha dissertação está entre as obras do anteprojeto de mestrado
dela na UFRJ. Fiquei bastante animado. E na sequência, pude dialogar com os/as
colegas e com o professor sobre aspectos do cânone literário e um dos colegas disse
que estava tomando nota das minhas considerações na minha fala e nos meus
comentários no chat.
Essa segunda aula me encheu de ânimo e fez com que eu me lembrasse dos tempos de sala de aula como professor universitário e como aluno dos cursos de pós-graduação, especialmente dos momentos de diálogo, seja em sala de aula, ou das conversas que travávamos na sala dos professores.
Fizemos parte de um grande time de professores e
professoras com protagonismo em muitos momentos de nossas áreas. Essa é uma lembrança
muito boa. Desejaria que esses momentos pudessem voltar, mas vejo cada vez mais
a Literatura sendo tratada como um saber instrumental, facultativo, ornamental
e complementar de outros saberes tais como estudos culturais, ou então, com
tecnicismos distintivos de valores não inerentes aos autores e obras estudados,
mas aos seus estudiosos/as, produzindo-se assim, em alguns casos, uma espécie
de gradação, de hierarquia entre os pesquisadores/as.
Sinto, e talvez seja um
sentir de quem foi “defenestrado” ou “enxotado” do cotidiano da docência no
ensino superior, como se domínio de uma área, ou atuação em uma área pudessem
definir valor pessoal do pesquisador ou pesquisadora. E vejo muitos holofotes e
clubismos em alguns temas. O que faz com que pareçam herméticos e inacessíveis
mesmo aos demais pesquisadores/as. Mas pode ser talvez um sentir de quem tá no
banco sem previsão de voltar a entrar em campo e menos ainda de vir a ser
titular.
Em contrapartida, vejo
que muitos jovens professores e professoras estão se adequando às ferramentas
dos canais de comunicação virtual e construindo um ethos de estudos literários baseado em tarefas, gameficações
(realizar determinadas leituras em determinado tempo mediante escore virtual de
prestígio e/ou recebimento de produtos, bens e/ou serviços) ou de listas de
checagem de aspectos, personagens, períodos, temas, etc.. Numa espécie de
maratona.
Há uma profusão de canais
(alguns muito bons), mas fico pensando nos caminhos da próxima década em
relação ao ensino de Literatura no Brasil. Certa vez escrevi a um notável
professor falando sobre minha preocupação com relação à omissão da nomenclatura
Literatura nos cursos e documentos emitidos pelo MEC, sobretudo nos cursos de
licenciatura oferecidos pelas IES particulares, e nos nomes das disciplinas no
Governo do Estado do Rio de Janeiro, bem como sobre o tempo destinado ao ensino
de Literatura na grade curricular... Ao que ele me respondeu que já não possuía
condição de opinar em função de estar aposentado do magistério. Um balde de
água fria.
Entendo que o sujeito se
aposenta do magistério, mas não deixa de ser professor. Queria que a ABL se posicionasse e pudesse de
alguma forma exercer uma função na linha de frente da defesa do ensino de
Literatura em nosso país. Ao que me consta, quando muito, defende os imortais e
suas obras. Dentro em pouco, se nada for feito, nem imortais, nem obras.
O cânone brota do meio
das pedras e não há incenso de grandes editoras capaz de sacralizar o gosto do
público ou garantir a permanência das obras. Sem os cursos de Literatura minimamente
organizados e respaldados, o futuro é a arqueologia de teorias e conceitos da
Literatura ou sua diluição irreversível no corpo dos estudos culturais. Que as coisas melhorem e que eu possa estar
equivocado. Coisa de matuto.
Fico por aqui, sem muito
assunto, mas cheio de coisas pra dizer. Milagre que alguém as leia, milagre que
alguém as ouça. Depois disso, que venham pães e peixes. Que o sacrifício é
certo.
Recomendações a você,
Layla e as crianças.
Abração.
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