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Poeta - escritor - cronista - produtor cultural. Professor de Português e Literaturas. Especialista em Estudos Literários pela FEUC. Especialista em Literaturas Portuguesa e Africanas pela Faculdade de Letras da UFRJ. Mestre e Doutor em Literatura Portuguesa pela UFRJ. Nascido em Goiás, na cidade de Rio Verde. Casado. Pai de três filhos.

quinta-feira, 26 de dezembro de 2024

Crônica: "O vômito do mercado", de Erivelto Reis

 O vômito do mercado

Erivelto Reis
O mercado é o carro importado que arranca com a paçoca do ambulante deixada sobre o retrovisor no sinal vermelho. O mercado é o cidadão, pretensamente de bem, que abandona o pet no campus da universidade, cuja política de acolhimento e permanência ele desconhece, despreza e odeia. O mercado é o pai consumidor que agride, ameaça e oprime o professor de seu filho abusivo, consumista e cliente. O mercado pleiteia área vip no mundo, aparthaid e segregação econômica e social. O mercado odeia os sonhos dos pobres enquanto lhes vende a fantasia de empreendedorismo e meritocracia. O mercado é despojado, altruísta e desinteressado para os de entre seus clãs. Apenas. E olhe lá... O mercado compra empatias através de slogans e novelinhas . O mercado ganha milhões com engajamento de haters, influencers, discursos de ódio, mentiras, alugando legendas político-partidárias, cooptando imbecis, gente violenta e abjeta, manipulando editais, corrompendo pessoas, suas crenças, a imprensa e os dados. O mercado odeia o povo, porque não gosta de obter os centavos oriundos diretamente das mãos dos trabalhadores por um serviço ou produto que lhes ofereça. O mercado só é capaz de produzir desgraça. Daí, prefere que bancos, governos, líderes extremistas e calhordas, veículos de comunicação de massa e grandes multinacionais façam esse "trabalho sujo" de lidar com os pobres, para que não reste qualquer possibilidade de igualdade e direito ao contraditório. O mercado admira como o judiciário brasileiro é caro, inacessível às camadas populares e segmentado em tantas castas que permita tatuar o seu rigor somente em peles e classes específicas e ver o seu semblante somente à distância. O mercado adora pensar que há nas forças militares e paramilitares os seus selvagens cães de guarda e guerra. O mercado se diz fragilizado diante de políticas de apoio e seguridade social e de inclusão econômica, enquanto educa seus agentes, corretores, economistas e analistas das farias limas, fiespes e que tais para sanguessugar, parasitar do erário público e das políticas públicas e sociais de governo tudo que for possível até o limite de manter-se o refém, hospedeiro vivo. O mercado gosta de pensar na gente brasileira como indolente e investe pra que se torne temerosa, endividada, grata por migalhas e conformada com a condição que se lhe imponha. O mercado despreza profundamente o garçom, o porteiro, a vendedora e qualquer pessoa que lhe preste serviço e/ou que pela proximidade circunstancial se atreva a olhar nos olhos de seus representantes. O mercado adestra os que escolhe para a servidão e a prática da crueldade sem remorso. O mercado ganha duplamente quando um familiar tem de explicar a outro repetidas vezes que a tortura, a violência e a corrupção, assim como o desprezo à educação, às ciências, às artes são formas de dominação e alienação das massas e uma forma de manutenção dos privilégios das classes mais abastadas que exploram a mão-de-obra dos trabalhadores. O mercado adora ver a classe média sem espelho e autocrítica e contra os assalariados e servidores públicos. O mercado não tem escrúpulos em usar o próprio idioma e alguns arabescos vocabulares para classificar como inferiores os falantes dos países que domina. O mercado gosta de Mônaco, Berna, Maldivas e Canárias e Caimãs. O mercado não consola as famílias enlutadas, nem condena executores, agressores e corruptores que lhes forneçam alguma vantagem e aos quais, apesar de todas as evidências, vai afirmar não estar ligado. O mercado não se vê num mundo em crise climática a não ser para lucrar com o estrago que ele mesmo financia. O deus do mercado é o dinheiro e o inferno para ele é que os mais pobres e os que os defendam ainda insistam em continuar lutando. O mercado reza um evangelho de ódio, uma ladainha de crimes vomitando... Vomitando.

sábado, 23 de novembro de 2024

Poema: "O ego do demagogo", de Erivelto Reis

 O ego do demagogo

Erivelto Reis
O náufrago que fugiu pra ilha
Antes do naufrágio
Não é náufrago.
É alguém que abandonou o barco.
O sábio que se isolou no topo
Deixando o vale ardendo
Não é sábio.
É alguém que se vendeu bem caro.
O sensível que aprisionou o pássaro
Por causa do seu canto extraordinário
Não é sensível.
É alguém que limitou o voo.
O hábil que fez só pra si uma regra
Que não contou e que não vale para os outros
Não é hábil.
É alguém que trapaceou no jogo.
Observe bem de perto:
Uma imagem com ausência de autocrítica
Só reflete o ego do demagogo.

Poema: "Eunice", de Erivelto Reis

 Eunice

Erivelto Reis

Para Marcelo Rubens Paiva e Fernanda Torres
Sêneca, Racine e Dostoievski...
Macabéa, Fedra, Nastácia,
Clarice, Cecília e Zuzu.
Alguns planos de Roma
Que se passam coloridos
E dolorosos no Rio.
Amor materno em eterno sacrifício....
A escolha:
Eunice Paiva,
Indaga, luta, não se cansa,
Não se cala.
Como se perguntasse:
Em que espelho ficou perdida a minha,
Ficou perdida a nossa face?
Ainda estou aqui,tal qual
Angélica mulher de Atenas.
Esfinge sem enigma,
A maior de todas as tragédias:
Que existam homens banais e Ameaçadoramente maus
Emergindo da orla do caos.

Poema: "Boletim de ocorrência", de Erivelto Reis

 Boletim de ocorrência

Erivelto Reis
À noite, quando apagaram as luzes,
Cercaram o amor na praça!
Bateram muito nele,
Fizeram a maior arruaça.
Prepararam uma armadilha,
Uma intriga, um "cala a boca".
Ficaram de campana, de tocaia...
Então sobreveio a emboscada.
Ele tinha saído de casa
Para respirar um pouco,
Na constante busca
Por um ar mais puro!
(Poderia haver um amor intenso e rarefeito ao mesmo tempo?)
Pensar nisso agora talvez
Não seja justo...
O amor andava cabisbaixo,
Deprimido, sem vibração...
Já viram amor chateado?
É de partir o coração.
Já viram amor silenciado?
Não é bom nem tocar no assunto...
À noite, quando ninguém olhava,
Espancaram o amor.
Fizeram na maldade,
Fizeram de pirraça!
Atraíram ele com falsa promessa
Com uma fala falsa, mansa...
Com um cheiro de pipoca doce
Ou de Alfazema e Toque-de-amor.
Magoaram um amor destruído,
Cansado e distraído.
Daí se pode intuir
O tamanho do trabalho
Que não tiveram.
A covardia do rancor sincero!
Avançaram nele para maltratar,
Para machucar, para fragilizar.
Não pediram nada, não levaram nada,
Perguntaram apenas
Porque ainda era amor
Mesmo não sendo coisa alguma?
E se o amor, que tudo suporta,
Quando já não aguenta mais
Continua sendo amor?
(A fúria retórica da filosofia
Com o capuz dos axiomas
Cobrindo o rosto)...
Aturdido, o amor ainda viu
Os agressores fugirem...
Mas o próprio amor, sem amor próprio,
Não seria capaz de reconhecê-los,
Ou de tornar a pronunciar seus nomes.
Mesmo assim,
A queixa ficou registrada.
Atacaram o amor na esquina, na rua,
Na praça, na beira da estrada.
Ele foi de "arrasta-pra-cima"!
Os transeuntes alegaram
Que não viram ou ouviram nada.
Como sempre, todo dia...
Atacaram o amor na praça.

Poema: "G20", de Erivelto Reis

 G20

Erivelto Reis
Uma feira de produtos naturais
Mas os passarinhos
Estão engaiolados,
As peças roubadas estão à venda...
Cada um com sua sacola
Quer levar vantagem
Comprando mais e pagando
Sempre menos.
Não tem o rapa, nem o Rappa.
Não tem pastel, nem garapa
Vez em quando alguém
Pega algo de uma alheia barraca
E sai andando calmamente
Sem pagar.
G20 é uma feira,
Uma fogueira de vaidades
E de bravatas...
Repleta de bárbaros,
(Com as mãos lavadas em sangue),
Usando terno e gravata.

terça-feira, 22 de outubro de 2024

Poema: "Gene", de Erivelto Reis

 Gene

Erivelto Reis
Um dia criaram uma máquina
De imitar gente
E ninguém desconfiou de nada;
Um dia criaram uma máquina
De imitar inteligência
(Propriedade intelectual furtada);
E ninguém reclamou de nada
Um dia criaram uma máquina
Que criava outras máquinas
Que criavam outras máquinas.
E depois desse dia
(Não se sabe se foi o sétimo...)
Ninguém descansou jamais.

quarta-feira, 9 de outubro de 2024

Poema: "XV/X", de Erivelto Reis

 XV/X

Erivelto Reis

Caminham ao nosso lado,
mas pisam em nossos pés.
Andam a nossa volta,
mas não enxergam as depressões
pelas quais passamos.
Não gostam do que sabemos,
mas fingem saber mais e melhor que nós.
Dizem que não há importância
em nossas palavras,
mas temos que lutar ainda pelas oportunidades
daqueles e daquelas que esperam ouvi-las.
Falam em direitos e empatia
e entendem como gosma, uma lesma
os deveres que desprezam.
Caminham ao nosso lado,
mas ignoram o horizonte que apontamos.
Dependem de nossa insistência
Mas diariamente nos forçam a desistir.
Não vão todos os dias,
mas nos dias em que estão,
não estão mesmo
e se comprazem com nosso exílio forçado.
Peregrinam conosco,
e desprezam nossas promessas,
nossa urgência, nossa pressa,
e a vontade que nós temos
de que vençam e sobrevivam.
Percorrem os mesmos corredores,
mas correm pra longe de nós
como se a água benta que aspergimos
destoasse dos seus sonhos, desbotasse suas grifes
e os embebedasse sem alegria e sem ressaca.
E riem e riem a cada vez
que um de nós é feito de bobo, de babaca.
Escolhem o naufrágio à nova terra,
o deserto ao oásis,
a distância ao objetivo,
a violência ao afeto.
Escolhem sem saber, (por querer),
mas escolhem.
Caminham ao nosso lado,
mas poucos nos dão as mãos.
Chantageiam com ameaças
de escândalo, intimidação e menosprezo.
Vêm contrariados para nossa festa,
e nos expulsam de nosso próprio endereço.
Hipnotizados por bets,
haters, influencers.
Operam teclados virtuais,
com olhos de crateras lunares,
(Inescrutáveis até pra NASA)
E olheiras indisfarçaveis,
doentes de existir sob falsas crença e causas
Com fúrias e preguiças abissais.

domingo, 6 de outubro de 2024

Poema: "Date", de Erivelto Reis

 Date

Erivelto Reis
Dentro dos próximos 50 anos
Há de surgir uma nova espécie:
Misto de humano e fera.
Aumentarão os dias do ano,
(Será o fim de uma era)
Diminuirão ainda mais as horas de sono.
Nem outono nem primavera
Estarão no calendário das estações.
Falar não será valorizado,
Escrever será coisa do passado.
Não haverá governos...
Somente corporações.
Memes serão a nova bíblia
E likes substituirão emoções.
Haters terão poder de polícia
E a arte será um tipo de
Droga proibida.
(A poesia será uma droga viciante!)
A nova espécie não morrerá de doenças
Apenas será delatada e
Ou vítima da violência.
Um chip substituirá o cérebro
E os olhos serão a nova tela.
O medo e a depressão
Substituirão qualquer prazer.
Dentro de 50 anos,
Desenha-se um date:
O encontro com um destino sombrio...
Ou daqui a cinco minutos,
Dependendo de qual fera
Possa cruzar o seu caminho.

domingo, 22 de setembro de 2024

Poema: "Pluft", de Erivelto Reis

 Pluft

Erivelto Reis
Não vá cair na asneira
De abrir a porta da alma
Pra um amor fantasma.
Ele não tem medida, nem mente,
Ele não tem medo de nada.
Dá uma trabalheira danada.
Tem gente que zomba,
Leva na brincadeira.
Mas o amor fantasma
Se perde pela casa,
Mexe em suas gavetas,
Bagunça tua prateleira,
Vigia tua noite,
Esvazia o sentido dos teus dias.
Amor fantasma é um amor
Assassinado pela rotina,
Um amor desencantado
(Quase) sem vida,
Que não viceja,
Daí se vinga
Amando ainda,
Onde quer que esteja!
Às vezes, amando mais ainda...
Sem ir embora,
Perambulando no entorno
Do desalmado amor
Sadoestoicista,
Mas sem partida.
Amor fantasma
Não é um amor qualquer
É um amor que aprendeu
A ser voyeur, mas não aprendeu a voar.
Que se acostumou a cair,
Mas não aprendeu a partir...
Que descobriu na marra
A longa distância do "perto".
É um amor banido
Do mundo do desejo dos vivos...
Que quer voltar a dormir
Na companhia do seu afeto,
Na companhia do ente amado.
Não vá abrir a porta da alma
Pra um amor fantasma.
Pois o que sobra do desamor
É um amor mal assombrado.

Poema: "Ponto-de-vista", de Erivelto Reis

 Ponto-de-vista

Erivelto Reis
Eis que chega um tempo,
Um estranho agora,
Em que todo pensamento
É forjado de memória:
Essa labareda subjetiva
Que brinca
De esconde-esconde
Entre um lóbulo,
Um átrio e a alma,
É uma identidade secreta,
Que o indivíduo ostenta,
Esconde e carrega.
Roupa de gala ou pantufa rota.
Queima, algo febril,
Silencioso ardil
De bis para a dor ou prazer.
Parece emanar de nós,
Mas nós é que existimos nela.
Abre dessa forma
Uma paisagem e uma janela
Um ciclo, uma aliança, um elo
Entre lembrar e imaginar,
Entre criar e duvidar,
Entre um tango e um fado.
Entre um cheiro, um gosto,
Uma sensação de já ter vivido...
De se lembrar ou se esquecer
Um trauma, uma voz, um rosto.
Parece um cúmulo
Que haja memória
Que seja, ao mesmo tempo,
Nascimento, florescimento e túmulo.
Jazemos ilhados
Mergulhados no passado,
Como numa sexta-feira
Cheia de morangos mofados...
Ou entre o que conquistamos
E o que perdemos
Sem saber que era conquista.
Há dias em que o pensamento
É quase todo memória...
Mas isso é apenas
Um mero ponto-de-vista.

Crônica: "Os donos de tudo", de Erivelto Reis

Sobre a expulsão dos estudantes na UERJ e outros desmandos do governo do Estado

Erivelto Reis

Terceira semana de setembro de 2024

 Invadindo (ou adentrando com um "documento") a universidade a poder de polícia pra expulsar estudantes; desvinculando receita de royalty da indústria do petróleo da obrigatoriedade do direcionamento do pagamento prioritário de aposentados e pensionistas;

superlotando o serviço público de contratações temporárias que precarizam ainda mais o serviço, o trabalhador contratado e o funcionalismo;
torrando o dinheiro do Fundeb e da venda da CEDAE em "projetos" (pra inglês ver), que canalizam para empresários o dinheiro que deveria servir pra valorizar os servidores e melhorar de fato as condições das escolas;
aplicando técnicas de verificação de marcadores de "qualidade" na educação oriundos de esquemas abandonados pela iniciativa privada norte-americana dos anos 60 do século passado;
implementando ou permitindo a gestão remota das unidades escolares ou permitindo modelos de gestão em diversas unidades, à maneira do que se pratica na iniciativa privada, onde as escolas têm um dono e os diretores são chefes...
Isso tudo ocorrendo na cara de um governo federal de esquerda, eleito por pessoas que resistiram e prantearam seus mortos no massacre de brasileiros e brasileiras ocorrido durante a COVID, permitido e articulado por um governo raivoso de extrema direita.
O governo federal, como sabemos, não governa o estado do Rio, mas as verbas do MEC ajudam a pagar o salário dos servidores estaduais da educação. É preciso olhar o que os governadores estaduais têm feito.
Esse atual governo federal de esquerda não derrubou o hediondo novo ensino médio, que serviu e serve aos interesses da direita, quando deveria implementar uma política de Estado de educação democrática e igualitária e preferiu o "jogo político". Nitidamente o Novo Ensino médio amplia as desigualdades e o atual governo não devolveu a carga horária das disciplinas "tradicionais" pertinente e adequada à real formação dos filhos e filhas da classe trabalhadora.
O atual governo de esquerda que se mantém omisso ou a passos de tartaruga em relação à censura de obras em diversas redes estaduais e ao descontrole do que ocorre nas práticas e condições de trabalho e formativas do ensino fundamental em todo o país.
Evidentemente, o atual governo de esquerda, não se iguala ao governo anterior de forma nenhuma. Mas não está isento de crítica. Merece, por parte daquelas pessoas, como eu, que entendem que ser de esquerda é lutar contra a barbárie e os privilégios de uma classe dominante e daqueles que a emulam ou se ufanam de se prestar à violência e à covardia que ela promove, um pedido de maior e melhor atuação, atenção e sensibilidade para a compreensão do que significa sobrepor um modelo ideal de governabilidade a determinadas áreas carentes de transformação e articulação, como a educação, por exemplo, pelo que representam para a soberania do país. Ou seja, com algozes da educação, inimigos dos estudantes e dos servidores não há acordo, nem se permite que suas violências cheguem a se realizar ou que não sofram sérias e exemplares consequências. Expulsar estudantes a poder da força policial é inaceitável. Mais uma das inaceitáveis práticas de partidos e figuras políticas perversas que há décadas governam o estado do Rio de Janeiro, mas agem como se fossem seus donos.

terça-feira, 10 de setembro de 2024

Poema: "Sermão do afastamento do ser violento", de Erivelto Reis

 Sermão do afastamento dos violentos

Erivelto Reis
São três os desejos do ser violento:
Poder,
Silenciamento,
Exclusividade.
Usados como degraus
Para uma ascensão
Que o distinga,
Que o proteja até a blindagem,
Que o destaque, impedindo-o
De regressar para o espaço
De onde não deveria ter saído.
É seu habitual prazer
O manejar do poder para o silenciamento
De contrários e contraditórios.
Eis um dos mandamentos
Da bíblia perversa dos violentos.
Evidentemente, há violências
Praticadas por todo tipo de gente.
Dos omissos aos coniventes,
Que chamam os que se rebelam
Contra os violentos
De inconvenientes.
Mas as violências praticadas
Pelos que têm como credo
Essa tríade:
(Poder, silenciamento e exclusividade),
São ostensivamente
Utilizadas para aferir
Sucessos efêmeros,
Nos quais o ser violento
Pretende uma simbiose,
Fundindo-se com o cargo
Que ocupa.
Assim, tenta esconder o recalque,
A frustração e a insegurança
Que, secretamente,o consomem.
Dele, dir-se-ia incapaz
De cometer o mal.
Eu refuto:
Incapaz talvez do mal sem álibi forjado,
Incapaz talvez do mal
Sem atribuir culpa
A quem quer que seja,
Incapaz do mal
Sem ser incapaz do bem
Por desinteresse.
O violento lê o jornal
Por sobre o seu ombro
E passaria por sobre o seu cadáver
E forçaria a sua depressão, Burnout,
Até que você se sentisse
O primeiro dos impostores,
A última das criaturas,
Ou se atirasse do alto da ponte.
Contamina seu fim de semana
Com o medo e a incerteza...
E a sua semana
Com o assédio e a opressão
Dissimulados e administrados
Em doses cada vez maiores e letais.
Dele, a eficiência se declama
Com números rearrumados.
E se o olharmos atentamente,
Veremos que crê na pantomima
De sua qualificação, no mamulengo
De suas habilidades.
Seu bom dia é rançoso.
Seu hálito enjoa.
Máquina sem engrenagem
Oco, tosco, fosco.
Opaco vulto,
Mágoa em pessoa.

sexta-feira, 2 de agosto de 2024

Poema: "Todas as noites em 67", de Erivelto Reis

 Todas as noites em 67

Erivelto Reis
Para Cícero César e Renato Terra
Há dias em que a sala de aula é um festival da canção...
E o professor é um Sérgio Ricardo
Partindo em dois um violão.
Há medo, desprezo
E intimidação por todos os lados,
Em toda parte.
Se não viralizar no Tiktok,
Então não pode ser verdade.
Se for remotamente
Parecido com ciência,
Então não espere
Que eles tenham paciência.
"Eu vou por entre fotos e nomes".
E nenhuma canção nos consola.
Lá no coração da vaia,
Lá no fio da navalha
Do festival da canção da escola.

Poema: "Labor", de Erivelto Reis

 Labor

Erivelto Reis
Eu quero contar outra história
Quero contar uma fábula
De animais humanos
Mais humanos
Que os de LaFontaine.
Eu gostaria que aqueles
Para os quais trabalho se vissem
Com os olhos e os motivos
Com e porque os admiro:
Por seu brilho, por seu potencial...
Porque acredito que poderão mudar o mundo.
Eu quero contar aos amigos
Que é tempo de romper
Com o que está ultrapassado...
A dor, os traumas do passado!
Os velhos esquemas
De vaidade e de poder...
Eu quero contar uma história
Em que o menino e a menina pobres
Não sejam subalternos,
Oprimidos e explorados por ninguém.
Não se escondam por detrás
De silêncios e da aspereza rude
Das palavras de ataque-defesa.
Eu quero contar uma história
Em que meu protagonismo
Seja de coadjuvante...
Sem propósito de fazer discípulos,
Seguidores ou afins.
Gostaria de coisas que sei que posso,
Mas que não posso o tempo todo,
Que não posso fazer por todo mundo,
Que não posso fazer sozinho
E para as quais nem todos
Terão sensibilidade, paciência
Ou verão finalidade.
Quero contar uma história
Em que, às portas do paraíso
Da plenitude da liberdade,
A credencial seja a amizade
E para entrar não seja necessário
Usar nenhuma chave
Além da Educação, além da arte...
Além da boa-vontade.

quinta-feira, 25 de julho de 2024

Poema: "Realejo", de Erivelto Reis

 Realejo

Erivelto Reis
Eu só tenho um desejo:
Que os velhos realejos
Deixem os circunstantes
Escolherem seus azares.
Pelo menos os que durarem menos,
Pelo menos os que não doerem tanto.
Não há possibilidade de pássaros extintos
Voltarem a levantar voos.
Certa vez fui à Paraty encontrar um poeta
Que se evadiu de lá...
E toda a cidade desapareceu como por desencanto.
Os animais trancados
Não são domesticados...
Só estão sob o jugo do casulo da ignorância
De quem os aprisionou.
A morte, o amor e deus explicam
Esse fenômeno de forma mais didática.
Não vão procurar justiça
Em nenhuma fórmula da física ou da matemática!
Deixem as loucuras para os domínios
Da Literatura e das surreais artes antipráticas.
Ponham pregos nos chinelos,
Parem de mastigar as sílabas e os chicletes.
Ou vão cuidar da própria vida.
Um realejo é um imã
Para o supersticioso
Que passa apressado
A procura de um horóscopo, um microcosmo.
Consultar a sorte será sempre um pedido de socorro.
Extintos:
Realejo, homem, sonho, pássaro... jamais o medo.
Amanhã será de novo o mesmo enredo!
Amanhã não haverá nenhum abraço.

quarta-feira, 26 de junho de 2024

Crônica: "Mercado, o monstro", Erivelto Reis

 Mercado, o monstro

Erivelto Reis

O mercado não se magoou ante a escalada de mortes da COVID, às falas medonhas do ignóbil genocida que presidia o país durante a pandemia, ao golpe econômico-jurídico-legislativo de 2016, às vergonhosas privatizações dos diversos e lucrativos patrimônios públicos brasileiros, ao execrável e excludente novo Ensino médio, às emendas parlamentares de bilhões e ao sequestro constante da capacidade de gerenciamento e implantação das propostas e projetos vitais para o desenvolvimento do país pela extrema direita e partidos hipócrita e demagogicamente alinhados com pautas pretensamente conservadoras, que ocorre descaradamente nas dependências da câmera federal, do senado e nas inúmeras comissões legislativas. O mercado não se abala com a marcha crescente da violência nas grandes capitais, com as pessoas pobres sendo executadas nas comunidades, com o neopreconceitantismo, com o fetiche de enriquecimento das corporações que tramam dia e noite a queda do funcionalismo público, com a exploração vergonhosa da capacidade e dos talentos dos trabalhadores e trabalhadoras, com a espetacularização da estupidez e da ignorância e com a desvalorização da arte e da educação que será oferecida ou acessível à população... O mercado,essa entidade abstrata, esse monstro ávido por censura, privilégios e por esquemas legais/imorais de sonegação e transferência de prejuízo para as contas do erário público, que especula e trama golpes, mini-golpes e formas de subverter a democracia e o potencial de crescimento do país aos seus interesses. O mercado é essa horrenda criatura que promove a desigualdade, estimula as mais diferentes formas de corrupção e aliciamento e se dá por satisfeito e que não se constrange quando consegue produzir a concentração de renda nas mãos dos poucos que o controlam e por arrancar das mãos dos trabalhadores e trabalhadoras os centavos que seja num reajuste salarial, os poucos gramas de arroz e feijão a mais no prato das famílias, o remédio para os doentes e o teto para abrigar seu repouso e sua capacidade de sonhar. O mercado assassina sonhos de soberania. Faz isso explicitamente e todo mundo sabe disso. E poucos e poucas têm e tiveram coragem suficiente para lutar contra isso. O mercado lucra sempre. Mas parece ter um prazer a mais quando seus ganhos produzem o aviltamento e a insegurança da dignidade e das condições dos mais pobres.

Poema: "Soslaio", de Erivelto Reis

 Soslaio

Erivelto Reis
Como a poesia
É um jeito de contar
Histórias de um país imaginário,
É preciso entender
É preciso aceitar
Que, para determinados lugares,
As palavras não chegam
No horário.
Não vem delas o conforto
Que esperamos,
Mas da roupa que vestem,
Quando se disfarçam de poemas.
Um bando delas passou por aqui outro dia
Carregando um sentimento
Que desmaiou de medo
Ante uma notícia triste e preocupante (Vinda do país dos afetos).
Para preservar o amor
É preciso cruzar muitas pontes...
E os mapas, às vezes,
Indicam direções conflitantes.
Mapas não são receitas
E ambos podem estar errados.
Como a poesia é um caminho sem volta,
Como a vida é estar de partida,
Cada palavra é um assombro,
Um susto, uma pista,
Um haver, um havia...
Cada poema é um mundo:
Horizonte, estranho e novo
Que ao nascer nos desafia.
É preciso olhar para esse mundo
De soslaio,
Com olhos de quem desconfia.

Poema: "Epônimos", de Erivelto Reis

 Epônimos

Erivelto Reis
Para Adélia Prado
“Entre paciência e fama quero as duas,
pra envelhecer vergada de motivos” (Adélia Prado)
Ainda que a humanidade
Visse uma mulher inteira
Feita só e toda de poesia,
Talvez nem assim
A reconheceria.
Ainda que toda
Sua trajetória demonstrasse
A poética força, bagagem de seus dias,
Talvez nem assim...
(Entre cecílias, clarices e lygias,
Pallotinis, Evaristos e Hilsts)
E preciso louvar a cada escritora talentosa que persiste.
Florescendo à beira dos caminhos e penhascos,
Alertando ou transformando-os em jardins.
Porque o mal não descansa,
A poesia não desiste.
Ainda que prêmios e promessas
De leitores e falsos leitores
Indexassem de epônimos os seus feitos,
Nem todos os seus poemas,
Nem todos os seus clamores,
Seriam capazes de comover
Os corações dos que só sabem
Proferir blasfêmias e fel
Contra escritores, artistas e professores.
Celebremos o dia de hoje
Em que Adélia, em nome de tantas,
Se agiganta aos olhares menos insensíveis,
Porque o amanhã atropela o sonho
E converte novamente os poetas e as poetas
Em Sísifos, anônimos seres incuráveis,
Por vezes invisíveis,
Irremediáveis, incontornáveis, irreversíveis.

sábado, 25 de maio de 2024

Poema: "Tríade", de Erivelto Reis

Tríade

Erivelto Reis

Não nego que seja possível haver quem goste

De algo que perdeu ou de alguém que se foi

Com afinco sem precedentes

De intensidade, de paixão e de entrega

Em nada comparáveis

Ao aparato afetivo empregado

De quando os tivera.

Não nego que diante da ausência do ente amado

A pluralidade de respostas emocionais

Ao reconhecimento do amor que passou, findou,

Desistiu de esperar a reciprocidade idealizada e devida

Seja muito mais dramática e intempestiva

Em sua oferta de conexão, desejo e entrega.

É por haver uma capacidade de amar

Para além do amor, um amor pra depois,

Um pós-amor,

Diferente, em esmaecimento de autoestima, ao desamor

Que acredito que a perseverança para a ruína

De quem não reconheceria o amor

Nem se tropeçasse ou fosse atravessado por ele,

Mantém os ébrios vestidos de sóbrios,

Os alucinados céticos

Os artistas em crise criativa

Ou processos embricados de supercriatividade

E hiperbólica interpretação,

Os deprimidos mergulhados na melancolia do desespero.

Por haver quem só percebe valor na perda,

É que os poetas têm ou não têm emprego

É que os poetas têm e não tem paradeiro,

Amores, leitores e dinheiro.

terça-feira, 7 de maio de 2024

Poema: "Às vezes, as pazes", de Erivelto Reis

 

Às vezes, as pazes

Erivelto Reis

 

Deus, quando quer perdoar, não perdoa!

Ele enrola, disfarça, não trapaceia:

Pega um pouco mais de barro,

Faz um empanado com areia,

Tira uma costela do outro lado,

Deixa no presente o seu passado,

Põe tua alma velha num corpo diferente.

Não quer atrasar seu lado,

Mas quer te ver penitente.

Deus, quando quer perdoar,

Perdoa!

Mas implica pra cacete.

Te faz capinar um lote,

Te esconde um monte de macetes,

Te joga na beira do Rio,

Te faz remar contra a maré.

Põe os anjos aos teus pés,

Compreende os teus defeitos,

Mas te vicia em café.

Deus, se quiser, às vezes, perdoa!

Faz um rascunho pra tua vida nova,

Troca a tua pena com a de outra pessoa...
Deus é um sujeito magoado,

Deus é um indivíduo estressado,

Deus é um ser mal-humorado,

Deus não anda de bobeira,

Deus não virou deus à-toa.

Deus pode até querer te perdoar,

Mas, daí a dizer

Que vai tudo ficar de boa...

É conversa pra boi dormir,

Que não engana mais ninguém...

Deus tem os mesmos defeitos

Que qualquer ser humano tem.  

 

 

sábado, 27 de abril de 2024

Poema: "Receita para entrar no Céu", de Erivelto Reis

 

Receita para entrar no Céu

Erivelto Reis

 

Não grite na porta,

Não questione deus, zeus, ateus

Semideuses ou alguém vestido de deus

Não chame por santos

Eles são quadros abstratos

Nas paredes de pó e nuvem

Não espere por milagres

Não diga que tem sede

Porque senão te dão um copo de vinagre

Fique afastado das grades, dos pátios

Dos átrios, no limiar do anonimato

Não tenha pressa

Porque te farão esperar

Por toda a eternidade.

Quem já lá esteja

Não brindará tua chegada

Não te oferecerá uma cadeira,

Um torresminho, uma cerveja

O céu é para os heróis,

Os faraós e os aerossóis

Que herdarão a Terra

Pois fizeram dela usucapião

E sabem que depois que ela sucumbir

O céu não vai fazer qualquer sentido.

No céu de faz de contas

Anjos e querubins

Se levantam enquanto passam

Os arcanos, os decanos e os chapolins

Enchem de ar e derrota os pulmões

E tocam os clarins

Para anunciar que algum daqueles deuses

Acabou de passar por ali.

Não reclame da falta de espaço,

Transparência e ética no recinto

Por qualquer coisa, um semideus se zanga

E o céu é Terra de quem só crê em si.

 

 

quarta-feira, 17 de abril de 2024

Poema: "Engulhos", de Erivelto Reis

Engulhos

Erivelto Reis

 

É gosmento o argumento dos hipócritas

São de pus as certezas do demagogo...

Tudo que eles falam talha,

Tudo o que fazem, jogo.

É metastática a sordidez dos canalhas

E seus ecrãs espelham suas taras.

Andam na rua,

Sempre à procura de defeitos

Que sirvam de álibis distrativos

Aos seus malfeitos...

São de carne morta a língua

E os ardis com que proferem certas frases...

É como úlcera, refluxo gástrico de monólogos

No palco do teatro de sua polidez de farsas.

Banem, discriminam... sequer suam,

Apertam a mão, enquanto rotulam,

Abraçam e mantêm perto pra punir.

Reagem, sorrateiros, emulando emoções

Qual malabares.

Não revelam a expressão real

De seus intentos mais profundos

São de pedra, incontornáveis desvalores,

Vomitam aspergindo seus engulhos.

 

domingo, 14 de abril de 2024

Poema: "Babilônia", de Erivelto Reis

Babilônia

Erivelto Reis
Tardiamente cheguei à Babilônia.
Ali todas as linguagens
Apontavam para uma
Possibilidade de futuro.
Esfregando, ruidosas,
O passado em todas as caras.
Estranho pensar como
O mesmo valor: a linguagem
Liberta a alguns e aprisiona outros.
Ar, espaço e sepulcro,
Correntes e asas.
O mesmo valor (sem valor)
O mesmo ouro de tolo.
Ação humana sobre a natureza,
Ação humana sobre a consciência,
A estética e a onipresença...
A mesma espada sagrando cavalheiros
E erigindo estátuas aos bárbaros,
Ou criando símbolos
Para rotular os bonequinhos
Dos lavabos...
Vício para os artistas,
Ruína e auge para os astros,
Prisioneira dos discursos dos tiranos.
Tardiamente cheguei a Babilônia,
Cenário devastado,
Império atacado por canalhas...
Escombro em ascensão constante,
Onde a linguagem dominava o mundo
E o mundo já não se bastava.

quinta-feira, 28 de março de 2024

Poema: "Sabujo", poema de Erivelto Reis

 

Sabujo

Erivelto Reis

 

Pelego

Que vende como eficiência

A sua pouca sapiência da disciplina

Que deveria ensinar e não ensina

Disfarçada na sua capacidade

De dissimulação e dissonância laboral

Que alardeia como símbolo de sua inteligência emocional.

Pelego

Que romantiza, com pitadas de humor infantil,

(Fingindo revelar um macete, contar um segredo)

A precarização salarial,

As péssimas condições de trabalho e o assédio moral

A que são submetidos os pelegos e os antipelegos

E sua falta de responsabilidade profissional

Em contos autorais em que este se destaca

E se autoproclama entre os maiorais.

Pelego

Que açula contra os bons profissionais

A sua horda de bajuladores mais boçais

E faz as lições pra eles, e lhes dá dicas valiosas

Que pretendem que comprovem quanto é mau

O desavisado desafeto de que espera se livrar

Emprestando trabalhos,

Interferindo e desvirtuando os procedimentos avaliativos

Assinalando as respostas nos livros e pdfs que fazem com

Que paspalhos antiéticos se passem por ultrajados cdfs.

Pelego

De olhar terno e fala suave

Que orientou demissões, que articulou gravações

Ilegais de seus colegas

E alardeia vitórias sem batalhas

Ombreado à súcia de covardes e canalhas

Alimenta-se das migalhas que lhe atiram os patrões

E dos aplausos de incautos e mandriões.

Pelego

No silêncio de sua consciência

No deserto de sua ética

Passa dia e noite, sem intervalo

E com a logomarca de seus patrocinadores,

A mesma novela patética.

Pelego: títere da própria queda.

sexta-feira, 22 de março de 2024

Poema: "Silenciosa anatomia do descarte", de Erivelto Reis

Silenciosa anatomia do descarte

Erivelto Reis

 

Com essa areia você construirá seu castelo:

O dia seguinte sem você

Não será o ocaso do mundo.

No seu trabalho (se ainda houver trabalho), na sua rua

Um perfume de passado

Vai desfilar no ar.

Os poucos que amarão você

Irão se aproximar do precipício

E em silêncio ouvirão

Sua voz num eco

Proveniente do luto

Da impotência.

Diante do desastre

Há quem desista,

Ou produza alguma obra de arte...

Mas o que o prolifera mesmo,

Em quase toda parte,

Silenciosa anatomia do descarte,

São caixas cheias do que eram bens

Inestimáveis apenas pra você,

Remorsos inescrutáveis,

Que virão à tona como um refluxo ácido

Saindo das profundezas do estômago

De sua alma.

Os traumas que você houver causado

Se tornarão o vômito das memórias recuperadas

Ou cinematograficamente inventadas,

Numa coreografia de adeus apressado.

Um porteiro, a balconista da padaria

Vão pensar: “ué, faz dias que não o vejo”

Até concluir dizendo com enlevo:

“Coitado... tão novo (mesmo sem ser verdade),

ao menos descansou,

Que deus (se ainda houver deus) o tenha em bom lugar”.

No mais, o de sempre: fluidos corporais, gente infeliz,

Algodão no nariz, vísceras, saudades

E outras bactérias que devoram o corpo.

Com essa areia você construirá seu castelo!

Eu explicaria isso ao meu neto,

(Única criatura da qual eu não seria arquiteto)

Única travessia da qual eu não veria o final do trajeto,

Deixaria escrito num poema,

Escondido na moldura de um quadro

Ou num cofre de mim mesmo:

Como um código de um diálogo para sempre indecifrado.


domingo, 17 de março de 2024

Poema: "Nulo", de Erivelto Reis


Nulo

Erivelto Reis

Escrever um poema, trocar o tempo pouco

Que suponho que me reste,

A  juventude lasciva das paixões e das palavras,

O fogo das ideias e dos ideais de revolução

Por um poema, um verso bom apenas...

Que sobreviva e que force a arqueologia,

A procura de meus restos e rascunhos.

Para que no futuro, no apagamento eterno

Da materialidade de qualquer

Circunstância ou referência

Que me acorde do fundo de meu sono sepulcral,

Eu não precise lidar

Com o mundo que eu pensava que era meu,

Com um presente que eu tive e não me deram,

Com uma memória, Cérbero, às portas do inferno

De qualquer sentido literal ou metafórico

De algo que eu não criei

E que ao me lerem, me atribuam.

Escrever para não ser

Um poeta descoberto como um fóssil

Ou ter as palavras derretidas pelo magma:

Síntese, cinzas, sintagma.